Olhou os óculos em cima da mesinha.
Não pegou. Por um instante ficou a observá-los. Assim. Sem mais nem por que. Ia tirá-los do lugar - quando parou. E ficou a tentar entender. Os óculos. As lentes. A correção da visão. Lentes corretivas – como tecnicamente nomeavam.
Veio um pensamento.
Será que enxergariam algo. Será que viam o mundo diferente do que ela via. Será que precisavam dela – como ela parecia precisar deles.
Aquelas lentes acrescentavam. Elucidavam. Transformavam borrões em linhas. E ficavam ali. Ou estavam ali. Em cima de uma mesinha. Fingindo abandono. Talvez pior - sugerindo abandono.
Olhou de novo. Agora com ar de desconfiança.
Que veriam - além dela. Ou aquém dela. Ou apesar dela. Ou pior ainda – o que escondiam dela. Sim. Ficaram o dia todo ali – de algo deveriam estar em acordo ou desacordo. Mas nada assim – ingenuamente.
Notou que uma haste estava um pouco mais torta do que a outra. Não tocava muito bem na superfície plana. Ficava um pouco no ar. A outra mais centrada – atingia a mesa e repousava. Ou parecia. Vai ver a que estava no ar estava mais descansada. Vai lá saber onde é o ponto de relaxamento. De cada forma de visão. Ou de cada haste de visão.
Ficou com uma dúvida. De que lado estava a visão.
De dentro das lentes. Ou de fora das lentes. Como seria ver a lente ao contrário. Poderia expor a visão delas. Ou ocultar a própria. Será que veria a si mesma de outra forma. De fora para dentro. Já que com os óculos tentava enxergar melhor – mas de dentro para fora.
Era uma questão a pensar com mais delicadeza. Concluiu.
Se antes enxergava bem – agora precisava deles. Eles deram uma nova idéia do antigo mundo. Num momento em que - corrigindo a seu bel prazer – acrescentava o novo contorno. Apagava o enevoado. Podia até ser um feito perigoso - diga-se de passagem.
Lembrou da avó de uma amiga. Sempre avisara. Nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez, menina, nem sempre é indicado dedicar muito tempo para a nitidez.
Se os anos passavam - e modificava a forma de vê-lo – deveria ter uma razão. Uma razão muito mais existencial do que confusional. Esta foi a primeira palavra que a fez rir. Confusional.
Mas as lentes não pareciam dar importância.
Deveriam estar ali contornando outra situação. Não deveria ser por acaso que uma haste se erguia. E a outra se apoiava.
Aproximou a mão. Pensou. Vou colocar bem de leve no meu rosto. E ao contrário. Posso me compreender a partir daí. Ou me acalmar – me desentendendo de uma vez por todas. E logo eu. Que fico de análise em análise. Tentando quebrar sentidos. Quebrar textos. Quebrar palavras. Talvez a solução esteja nos inteiros. Nos sentidos concretos.
E ali está. O sentido ocultado e exposto em par.
Com toda a coragem – pegou os óculos. Mas não podia negar. Pegou com carinho. Com gentileza. Não queria perturbar assim de súbito o que eles viam. Ou queria surpreendê-los despreparados. E assim poder ver o que eles viam.
Quase riu – não fosse a seriedade da situação.
Ajudam a enganar as sombras – por certo. A redefinir os contornos. Mas não como antes. Antes da necessidade deles.
Óculos são perfeitos para criar a realidade. Acessória. Quando não mais acreditamos nela. Ou já não confiamos tanto. Ou mais ainda. Quando precisamos de um suporte - para voltar a confiar. Talvez até mais em nós do que na tal realidade. Algo por aí.
Foi aos poucos colocando em seu rosto.
Primeiro do lado comum. Depois do lado incomum. Tentou ver ao contrário. E no correto. Colocou. Tirou. Olhou para as lentes. Até tocou nelas com os dedos. Reagiram. Ficaram turvas. Compreendeu.
Decidiu deixá-los onde estavam por mais um tempo - com as hastes desiguais sobre a mesinha. Por mais um tempo – talvez.
O telefone tocou. Era ele. Vai lá saber por que. Colocou os óculos. Sem delicadezas. Sem pedir licença. Sem teorias. Colocou e pronto.
E conversou – nitidamente feliz – com ele ao telefone.