Blog de Lêda Rezende

Setembro 11 2009

 

O cenário era o mais - .

 

Parou na palavra mais. Faltou palavra. Sobrou questão. Faltou frase. Sobrou pontuação.

 

Assim. Como uma poesia invertida. Lembrou até do dramaturgo Frances. Ele estava correto. E atual. Era verdadeiro o teatro do absurdo. 

 

A caminhada era em direção à música. A um concerto. Conhecia a orquestra. Conhecia o local. Garantia de prazer com certeza absoluta.

 

Lembrei dela. Íamos muito. A última vez foi com ela. Ainda não tinha optado pelo teatro do além mar. Já acordei enviando recadinhos. Malvada - escrevi rindo. Adivinha para onde vou hoje.

 

O dia estava frio. O céu de um belo azul turquesa. Um ventinho tranqüilo percorria as pessoas e as árvores. Em volta do Teatro - prédios antigos restaurados davam um quase sofisticado toque de elegância - ao antes envelhecido e descuidado. Poucas pessoas passavam caminhando. Só um ou outro que parara o carro mais distante do local do concerto.

 

Foi nesse percurso que surgiu uma esquina.

 

A caminho do concerto.  E foi na virada da esquina que pareceu virar o mundo. Ao avesso. Ou ao direito. Isso nunca se sabe mesmo. Mas parecia que tinha virado. Talvez até coubesse um túnel. O do tempo.  Tudo isso me veio à mente. Aos borbotões. Pode até ter faltado palavra ou frase. Para completar o mais. Porém não faltaram - mais.

 

Ali poderia caber tudo. O começo. O meio. Até o fim. Do mundo. Parecia que espaço e tempo tinham se desordenado de repente. Onde era para ser centro – se transformara no final. Onde era para ser contemporâneo - se transformara em medieval. Mais ou menos assim.

 

Passível de se dizer - assombroso. Ou pavoroso. Ou deprimente. Ou assustador. Ou melancólico. Tudo com um mais na frente de cada adjetivo.

 

Ela vinha. Caminhava seminua. Devagar. Parecia completamente à vontade. Aliás. Termo realmente adequado. Não ria alto. Não chorava.

 

Tinha o sorriso mais tranqüilo – outro mais – que se poderia supor. A roupa suja e rasgada cobria-lhe as partes escolhidas pelo tecido. Não por ela. O que expunha e o que ocultava era um mero detalhe aleatório. Onde não tivesse furos ou faltas – estava coberto o corpo.

 

Olhou para mim. Com aquele mesmo sorriso-tranquilo-social. Fez um aceno com a cabeça.

 

Lembrei do ar sofisticado dos prédios envelhecidos. Só que ao contrário deles - não fora restaurada. Muito menos acolhida. Morava onde deitasse. E sua casa era uma sacola que segurava com a mesma tranqüilidade que sorria.

 

Era jovem. Deveria nem ter chegado à terceira década.

 

Alguns ainda dormiam pelas calçadas. Outros comiam. Outros simplesmente restavam ali. Não olhavam nem para ela - nem entre si.

 

Estanques no particular de cada história. De cada destino.

 

Depois do aceno que me fez, virou-se para o céu. Olhou. Conferiu. Não sei bem o que. Mas pareceu encontrar o que buscava. Fez uma volta sobre si mesma – sentou num degrau da calçada. Displicente com as roupas e seus rasgados permissivos – abriu a sacola. E se concentrou.

 

Quem sabe - uma Pandora de si mesma. Moderna portadora das aflições antigas. Ou o contrário.

 

Mas esta não é uma avaliação fácil - nem confiável.

 

Na esquina seguinte - outro cenário. Surpreendente - não fosse a certeza do procurado.

 

Mudava tudo. Desde cores a cheiros. Desde passantes a ocupantes. Dava até para uma confusão mental. Como se os atores desta peça urbana e a construção apropriada para a encenação - estivessem em desencontro.

 

Lá estava o belo Teatro. Suntuoso. Imponente. E com a fachada em restauração.  Incrível.

 

Até olhei para trás. Ela não estava. Esta não era a esquina dela. Ou ela não era desta esquina.

 

Nas escadarias as pessoas aguardavam. Excessos de tecidos cobriam os corpos. Meias e botas. Sorridentes e falantes – muitos aguardavam a abertura.  O dia frio convidava a agasalhos coloridos. E era um –mais – de delicada sobriedade. Quase uma celebração.

 

Veio o primeiro aviso. O segundo. A orquestra começou.

 

O regente ergueu a batuta.  Excessos e faltas se igualaram e se diferenciaram.  A música preencheu espaços. Enfiou-se em cantinhos. Aguçou sentidos. Liberou emoções. Como se despisse a cada um por inteiro. E cobrisse a cada um por partes.  

 

Na saída voltei pelo mesmo caminho. A Pandora de si mesma e a sua caixa - dormiam aconchegadas.

 

Estava assim – mais - marcado o domingo.

 


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