Blog de Lêda Rezende

Agosto 19 2009

 

Ela viu a porta aberta e entrou para um cumprimento.

 

Sentou com suavidade. Puxou a cadeira para mais perto da mesa. Muito polida. Estava bem maquiada. Batom discreto. Os cabelos longos e com cachos soltos emolduravam a face. Tinha aneizinhos nos dedos. Uma roupa em tons claros adequada para a ocasião e estação. Assim. Toda uma lógica percorria gestos e atitudes.

 

Falava com voz serena acompanhada de um riso contido.

 

Na hora pensei esta palavra. Contida. Não dei o destaque necessário. A esta observação. Errei. Sempre que algo der um sinal de alerta – deve-se estar atenta ao sinal de alerta. Este é um princípio básico. Do Manual da Socialização. Ou da Sobrevivência. Me chamou a atenção. Mas fiquei escutando o que dizia. Ela falou. Com todo aquele jeitinho dócil. Olhava também com certa docilidade. Certa docilidade. Outra observação – notei e desconsiderei.

 

Como dizia sempre a minha avó. Fica atenta ao erguer espontâneo da própria sobrancelha, menina, fica atenta ao erguer espontâneo da própria sobrancelha.

 

Ela estava mais uma vez certa. Dava até para comparar com o mestre austríaco. Sobrancelha é o melhor analista de uma situação. De uma atuação. Como se lesse sempre primeiro que os olhos. Ou escutasse muito mais que os ouvidos. Deve ter uma ligação direta especial com o cérebro. Como sentinela. Ergue-se como sinal de alerta máxima. E nem sempre é valorizada. Acaba-se por desconsiderar esta vigilante proteção.

 

E assim foi. Lembro que as minhas sobrancelhas se ergueram uma ou duas vezes. Mas fiquei - diante da docilidade - com ingenuidade. Mais ou menos por aí.

 

Fez um gesto sobre a mesa. Arrumou com toda uma sequência os papéis que estavam em desalinho. Acariciou os papéis na ordem que colocou.

 

Ajustou mais uma vez a cadeira em direção a mesa. Falou algo sobre gostar muito do que fazia. E sobre ser uma pessoa com uma dose alta de paciência e metodologia. Até usou esta palavra. Metodologia. O serviço de casa era cansativo. Mas tinha tanta metodologia que acabava ficando mais fácil.

 

O marido a questionava. Achava que nem tudo fazia bem. Achava que tinha culpa por alguns desacertos. Em especial da saúde. Por um tempo essas observações a incomodaram. Atualmente – não. Sabia que fazia o melhor possível. E garantia que ninguém faria melhor do que ela.

 

Tinha uma mania de limpeza quase obsessiva. Mas preferia assim que lidar com poeiras e sujeiras num ambiente de convivência familiar.

 

A cada frase encerrada – ou a cada ponto de continuação surgia um sorriso. Quase como um hífen. Ligando palavras e amenos trejeitos faciais.

 

Interrompeu um pouco o que falava. Pediu com a mesma voz dócil. Gostaria de um copo com água. Estava frio. Mas sentia sede.

 

Recebeu o copo. Colocou sobre a mesa. Num movimento casual para ajeitar a bolsa sobre o colo – derrubou o copo.

 

Ai sim. Foi a vez que fiz o tal aceno positivo em memória da minha avó.

 

Era uma outra pessoa diante de mim. O copo caiu. Não quebrou. A água se espalhou sob a mesa.

 

Ela ficou vermelha. O cabelo parecia que tinha até encolhido. Ou aumentado o número de cachos. A voz parecia ter dado um adeus eterno à docilidade. Nada de voz orquestradinha. Agora era voz tempestuosa.

 

Gritou. Eu odeio isso. Odeio o que faço. Odeio a ele. Odeio ter que cuidar dos outros. Odeio cuidar da casa. Odeio essa sujeira.  

 

Desta vez acho que até meus cílios se fizeram companheiros das sobrancelhas. Mas já era tarde.

 

Tentei acalmar. Acidentes acontecem.

 

Olhou séria para mim. Olhava para a água no chão e se desculpava. E esbravejava contra tudo e contra todos. Nem escutava o que lhe era dito.

 

No final de um tempo – o tempo superou a si mesmo. Pegou os objetos que estavam já numa cadeira ao lado. Perguntou pelas horas. Ajeitou os cabelos. E saiu.

 

Olhei para o chão molhado. Para os papéis alinhados na mesa. Para a porta.

 

Precisei de um tempo para que as minhas sobrancelhas e cílios voltassem ao local de nascimento. Pareciam estar já penduradinhos no teto.

 

A mocinha da limpeza entrou. Apagou o registro. O dia prosseguiu. Embora diferente do jeito que começou.

 

Recuperada - relembrei meu querido amigo indiano. É a água que cuida da limpeza. Seja da forma que for.

 

Consegui até rir.

 


Como sempre, belo, Lêda!
sara maria a 20 de Agosto de 2009 às 17:40

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