Os debates ficaram agendados. Os temas estabelecidos. O grupo se reuniu para o proposto.
A questão – naquele momento - era básica. Ele tentou formular com sobriedade. A traição está em que Lugar. Na emoção. Na omissão. Na materialização. Ou na obviedade da informação. Ou pior ainda. Na ambigüidade de um riso sorrateiro e explícito.
Ao final desta longa frase dita de forma entrecortada – um silêncio adequado se fez.
A cada um coube um pensar. Mas a ninguém parecia caber um responder. Pelo menos de imediato. Não houve um só já sei. Parecia que cada um se perguntava muito além da demanda.
Ela decidiu. Nada de tanto silêncio. Parecia indignada. Por que ninguém responde. Onde já se viu. Quem nunca se sentiu assim. Traída. Sofrida. Rejeitada. Revoltada. Quem nunca disse - eu que me dei tanto.
Surgiram alguns risinhos disfarçados. Parecia ser este exatamente o resumo das perguntas entrecortadas. Mas ninguém se atreveu a falar. Sequer a insinuar. Não era caso de gracejos. Era. Mas não para ela. Mais ou menos assim. Respeitaram a seriedade dela. Calaram-se e escutaram.
Traição é fato de escuta. Muito mais do que de fala.
Estava tensa. Mexia a colher do cafezinho como se cavasse a terra. Parecia querer exumar alguma mágoa antiga. Para vê-la – talvez - transformada em esqueleto. Ou em pó. Vai lá saber. Apertava a colherzinha com tanta força que os dedinhos até estavam esbranquiçados.
A voz começou rouca. Traição não é questão de Lugar. Nem de lugar. É mais uma questão de falta de assento. De falta de olhar. Traição é esvaziar uma pessoa. Totalmente. Expondo sua intimidade a outro. Traição é da ordem do visceral. Por isso dói tanto.
Parecia conversa de intelectual daquele país. Lá sim. Cada fala tinha uma total ausência de significado. E ampla plenitude de linguagem. Quem de fora estava - sempre concluía. Entendi nada. Mas sei que é importante. Muito importante. E não faltaram publicações e mais publicações sobre estes tão importantes- nada entendido.
Alguém teve uma idéia na sequência da escuta. E expôs rapidamente a tal idéia. Aqui também tem vinho. Olharam para ele. Riram aliviados.
Optaram pelo vinho. Mesmo correndo o risco daquela frase em latim. A esta altura qualquer risco parecia menor que a exumação. Foi a sensação que deu.
Alguns se levantaram. Caminharam pesado. Como se cobrissem algum túmulo com os pés. Outros se recostaram na cadeira. Como se buscassem um conforto. Um ou outro olhou para fora da janela. O olhar parecia invejar quem passava isento.
Ela sentou. Dispensou o café. Fosse a colherzinha um ser vivo e estaria grata. Até poderia respirar de novo. Ergueu a mão. Firme. Quase todos a olharam. Menos os que observavam os isentos passando na calçada.
E calma, muito calma, se dirigiu para a bandeja das taças. No rosto estava uma expressão de falei o certo. Pegou uma taça de vinho branco. Bem gelado. O copo solidário suava o excesso.
Comentou. Que cada um exponha seu recato. Eu de minha parte, decidi enterrar o meu. Continuou. Acho que virá um temporal. Pegou mais uma taça da bandeja. Fez um quase ballet na volta. Sentou com uma expressão de falei forte. Falem vocês agora. Ordenou.
Vai lá saber por que – acabou de ordenar e sentar - a cadeira virou.
Virou e caiu. De costas. Com ela dentro. Colada nas costas da cadeira. Pernas não tão coladas assim. A saia confirmando a existência da lei da Gravidade. Uma nova maquillage inaugurava o rosto. Refrescado pela rápida colaboração do vinho. Um susto. Um grito. Um desacato.
Levantou-se com ajuda. Recolheu o mais exposto. Secou o rosto.
Quando riu – todos riram. E as respirações retomaram o ritmo correto.
Traição, traídos e traidores voltaram ao seu devido Lugar. Entre risos e piadinhas cada um revelou e disfarçou seu pudor. Houve uma inútil tentativa de falas e pequenas pontuações sobre gestos e atos.
Em meio ao ocorrido - ficou encerrada a temática. Mal solucionada pelas palavras. Mas muito bem explicada por um objeto. Procedia.
Muitas vezes uma súbita performance se faz necessária. E elucidativa. Foi o que concluíram de mais imediato.