Acordou com uma nova sensação. Não diria estranha por que não temera. Mas diferente.
Nem bem abriu os olhos e já entendia o dia que se iniciava. Enxergou o dia muito mais que o dia já a enxergava. Ainda não se tinham olhado frente a frente. Estavam seguindo nos subterfúgios da noite disfarçada. Uma troca de faltas por excessos. Ou ao contrário. O dia requeria calma. Para ser vivido. Mas vai lá saber por que – já sabia disso antes.
O brilho entrava por baixo de uma porta. E pelas frestas da outra porta. Compreendeu. O sol se fazia forte.
Junto com o despertar um súbito pensar. Duas palavras. E tudo isso antes de levantar. Antes de por o primeiro pé no chão. Antes sequer de imaginar colocar o segundo pé no chão. Ate riu quando pensou nisso. É verdade.
Começo é colocar os dois pés no chão. Parece um chiste á toa. Mas não é.
Condescendência amorosa. Estas eram as duas palavras. Sob a luz da manhã.
Lembrou da avó da amiga. Ela sempre avisava. O sol sempre cria a possibilidade da sombra, menina, o sol sempre cria a possibilidade da sombra.
Entendeu bem a avó.
Mas coragem. Pôs os dois pés no chão.
Se sentiu como uma caricatura de si mesma. Ali. Ao lado da cama. Olhando a fresta da luz e de pé. Até olhou para os pés. Em outros tempos voltaria para a cama e começaria tudo de novo. Agora não. Enfrentou. Lá se foi com seu pé ordenando e obedecendo. A caminhada.
Saiu do quarto.
O céu estava de um tom de azul quase artificial. Intenso. Lindo. Um leve ventinho frio ainda se despedia da madrugada. O sol brilhava no alto. Foi até a varanda. Fez um gesto casual. Os passarinhos na sacada – saíram.
Casualidade permite leituras bem particulares.
As duas palavras não escapavam. Firmes. Condescendência amorosa.
Vai lá saber por que desceu as escadas correndo. Olhou o mundo em volta. E deu inicio ao programado. Pratinhos. Talheres. Toalhas. Bandejas. Até incenso. Foi fazendo na sequencia. Para que escapasse o mínimo. E todos se sentissem privilegiados. Dentro do seu estilo. Dentro do seu festejo.
Tudo marcado para o final da tarde. Para uma múltipla celebração. Todos felizes.
Ele com o sucesso já invadindo as portas recém abertas. Uma consequência do trabalho ético e árduo.
Ele tinha sido promovido na semana. Uma consequência da dedicação e responsabilidade.
E ele estava com os limites orgânicos se restabelecendo. Uma consequência da persistência e confiança.
E todos com um fio condutor em comum. A vida. Quase como uma poesia.
Se sentiu como numa platéia. Participante entusiasmada deste mundo em organização. Até se viu aplaudindo e dando vivas.
Telefonou para ele. Houve um pequeno mal entendido. Acertou meio que às pressas.
Telefonou para o outro. Novo pequeno mal entendido. Emendou o mais rápido que pode.
Riu. Até riu mesmo. Já estava tomando proporções maiores. Melhor não falar com o terceiro. A esta altura já se sentia numa maratona de palavras. E erradas - lógico. Como se em saltos com vara. Fora do risco permitido. Desistiu.
Achou melhor cuidar das tarefas braçais. Com dedicação. Com parcimônia. Com sobriedade. E dentro do que elas representavam. Sem buscas pela intelectualidade. Sem esforços analíticos. Sem digressão filosófica. Assim ela me disse. Assim ele falou. Assim você se comportou. Nada disso. Não era o momento.
Encerradas as tarefas – sentou. Sob o sol. Não viu a própria sombra. Nem tampouco procurou. Recostou numa cadeira. Com total tranquilidade.
Achou dentro de si o que procurava fora. Concluiu. É algo sempre solicitado. Mas pouco disponibilizado. E vira um-sem-fim-de-queixumes. Afastou esta frase inteira. Apagou hífens. Retirou as ligações. Os plurais. Os infinitesimais.
Deixou – simplesmente - que o sol esquentasse a pele. Sorriu. E aguardou. Aguardou a chegada deles. Para a celebração.
Estava feliz. Muito feliz.
Com toda a condescendência amorosa o vento balançava - com suavidade - a toalhinha branca sobre a mesa posta.