Blog de Lêda Rezende

Dezembro 26 2011

 

III

 

Rotina é rotina. Uma vez alcançada – é um ritual como se com ela se tivesse xifopagamente nascido. Depois de tantas mudanças externas e internas – uma rotina realmente se fez necessária. Talvez a única e estreita forma de tentar que a sanidade não se mudasse de vez de mala e cuia sabe-se lá para onde.

 

Ou se faz a rotina – ou se faz a medicação. Tem que saber escolher e ceder. Até os ímpetos têm lá seus momentos marcados. Assim ela – a Leticia - falava em forma de chiste duplamente disfarçado.

 

Mas finalmente habituada à tal rotina que criara em prol desta Filosofia da Percepção – Leticia estabeleceu os novos vínculos com as novas atitudes e fantasias. Sentia-se bem. Aliás – nem sabia que estava se sentindo tão bem até o momento em que muitas pessoas começaram a apontar. Não havia um só dia que os que com ela conviviam no cotidiano não comentassem – está mais jovem e está diferente. Pessoas que nem a conheciam a chamavam e timidamente elogiavam – permita-me lhe dizer que você está muito bonita com esta roupa. Ou elogiavam a pele. E quem já a conhecia e não a via com frequência - exaltava a diferença de anos anteriores e avisavam – está mais nova do que antes. Que beleza. E sempre uma curiosa observação seguia a pergunta – o que estava acontecendo a ela.

 

Se Leticia não tinha ou não queria a resposta certa – ria e fazia qualquer comentário generalizante - como se tirasse dela e jogasse no Universo. Se estava com mais disponibilidade citava a Física Quântica e as trocas cósmicas de Energia. Mais ou menos assim. Mas o que importava é que tirava dela a interrogação do outro. Virava uma exclamação – podia-se assim dizer. Ser tão seguidamente elogiada era novo para ela. Não sabia como lidar com a súbita vaidade oferecida e anunciada. E mais ainda – não costumava falar sobre si mesma. 

 

Vai ver aprendera isso com o pai. Ele dizia - quem revela muito de si mesma acaba esvaziada da própria identidade e preenchida pelo pensamento do outro. Não que não gostasse do pensamento dos outros – longe disso - mas neste momento em especial estava gostando um pouco mais de si mesma. Qualquer invasão tinha que ser bem dosada. Custara muito estar ali tranquila no novo apartamentinho de cinquenta metros quadrados. Tinha medo de aborrecer a Fadinha. Principalmente por saber que a Fadinha dela – era ela mesma.

 

A cada volta para casa – brincava com a Fadinha que deixara a casa arrumada e cuidava das plantinhas. Na saída – organizava e regava. No retorno – conferia e se divertia. Tudo em ordem. Eis os motivos que não saia sem arrumar todos os cantinhos. A volta sempre parecia mais feliz – e o tempo continuado. Quando entrava de volta na outra casa – a de médios metros quadrados e encontrava tudo na desordem do amanhecer ou do anoitecer – sentia que o tempo não fluíra. E não gostava disso. Olhava para o Universo e tentava se desculpar com a tal Energia que ficara prisioneira.  

 

Agora vivia um presente em continuidade. Disso gostava. Muito. Vai ver era mais um detalhe que a fazia se sentir ou aparentar renovada. Pode-se não saber a causa exata mas bem se pode colher os bons frutos dos efeitos. Isso acontece se e quando a causa – mesmo misteriosa - é bem tratada. Os mistérios escrevem as emoções codificadas e tem as próprias traduções – também codificadas - a serviço. Algumas vezes a maturidade ajuda a decifrar uma ou outra emoção. Algumas vezes.

 

Havia dias que ia passear na Avenida ou nas ruas das grifes. Ocasionalmente ia encontrar com alguma amiga. Raramente estava frequentando o cinema – hábito que vai lá saber qual o motivo – estava negligenciado. Deveria fazer parte das mudanças e de um atual detalhe constitucional. Estou vivendo a minha própria protagonização – pensou enquanto afastava o pensamento de filmes. Acalmou-se tão logo inventou esta palavra como sinônimo da atitude recém-criada. Deveria ser isso – concluiu. E deu por encerrada a menor que fosse possibilidade de culpa em relação ao que quer que fosse visto como compromisso desnecessário.

 

Em situação de impacto eufórico – Leticia brindou ao espelho a nova fase e sorriu. Estou até inventando terminologias.

 

Agora era a nova lei. Pessoal e intrasferível. Ria quando assim pensava e agia. Iria ao cinema quando desse vontade. As pessoas estavam certas - ela estava diferente. E compreendeu uma parte da tal jovialidade apontada – estava com atitudes novas e isso provoca reais efeitos no físico e na expressão fisionômica. A circulação se completa – o sangue se oxigena. Riu.

 

Enfim. Estava bem

 

E lá chegou a esperada sexta feira. Voltou para os cinquenta metros quadrados cheia de alegria. Antes passou no supermercado - comprou vinhos e queijinhos e água especial. Mais uma plantinha com flores amarelas. Como ninguém é de ferro – numa rápida olhada numa lojinha no caminho de volta - um vestidinho a chamou e insistiu para ser comprado. Obediente – cedeu. Assim explicaria ao gerente do Banco – amigo de muito tempo.

 

Entrou em casa. Fadinhas e plantinhas devidamente saudadas. Arrumou a bancada com as comidinhas de sexta feira e se serviu como se numa ceia coletiva. Estava tão adequada já ao novo estilo que – acompanhada de si mesma – Leticia fazia suavemente a própria festa.

 

Descobriu de uma tacada só que nem sempre se vestir com a própria pele é sinal de solidão ou de abandono.  É sinal de quietude interior. Não que seja este o caminho mais desejado – mas se ele vem – é buscar o melhor. Funcionava para ela – nesse período da vida – como se tivesse feito uma reconstrução. Não como a reforma material feita pelo senhor maravilhoso que trocara pisos e derrubara as paredes do apartamentinho novo. Mas dela mesma. Numa noite de insônia – surpreendeu-se com este pensamento. Entendeu que também derrubara paredes e arrancara portas – de si própria. Uma metáfora que a fez se auto-orgulhar. Pensou assim durante a tal insônia – e o sono veio forte e sedutor.

 

Dormiu segura sob o comando do Morfeu.

 

O tempo de adaptação e recuperação era particular. Convivia muito em harmonia consigo mesma. Às vezes brincava com as plantinhas dizendo – eu me amo. E em seguida se desculpava – amo vocês também

 

Até riu lembrando o Francesco – o convidado do primeiro Natal logo após a decisão da vida nova sozinha. Parecia já tão distante. Lembrava ainda a voz da mocinha positiva da agência de encaminhamento de companhia quando a solidão não fosse conveniente. Riu de novo. Esta parte também gostava dela própria. Criava as situações mais bizarras – mas conseguia lidar de forma administrativamente correta. Nunca mais soubera dele – do Francesco - ou da tia Luiza que mais viajava do que aterrissava. Vivia nos ares e nos mares. Bom para a tia Luiza que sempre fora tão arraigada à solteirice dela. Não sabia se o Francesco a expusera à Vida ou se ela expusera a Vida ao Francesco. Esse sempre um caminho de ida e vinda carregado de justas incertezas. Enfim. Sempre que a encontrava evitava o assunto. Cada um sabe do que quer falar – é preciso respeitar. E respeitava. Mas a tia Luiza parecia sempre muito bem – sorria fácil – algo bem difícil em tempos idos. Que se apossasse do que tinha que ser apossado. Vez ou outra percebia-se uma pulseira ocultando a tatuagem no pulso direito em forma de chama e com a letra F no centro. Outras vezes ficava à mostra. Deveria ter uma relação estreita com o estágio da relação e das trocas afetivas.

Leticia achava impossível não recordar o Lacan. Vai lá saber quem ocupa - na realidade dos laços - a posição fálica.

 

Até arriscou a revisar mentalmente Platão e os tais Erasteis e Eromenos. 

 

Vai ver é assim – de décadas em décadas as posições são mudadas. Quando pensou sobre isso – já estava deitada.

 

A sexta feira era um dos dias mais complicados no trabalho dela. Acordava muito mais cedo do que nos outros dias da semana e não era poupado um só segundo em torno do tanto fazer. Quando encerrava a atividade – estava sempre exausta. Naquela sexta feira não fora diferente. Repassando – fora uma das piores.

 

Colocou a tacinha de vinho na mesinha de cabeceira – o pratinho com alguns queijinhos. Antes de deitar uma ducha quente a fez lembrar toda a pele e cabelos fio a fio. Relaxou.

 

Apagou a luz do teto. Ligou a televisão. Pensou em Platão – quase foi pegar o livro na estante – mas deixou O Banquete para outro momento.

 

Preciso verificar se fechei a porta da rua e passei a correntinha – pensou enquanto se abraçava ao edredom.

 

O barulho fora forte. Não entendia bem de onde viera. Mas fora um estrondo. Escutou o barulho da correntinha da porta – na parede e na madeira. Alguém tentava entrar – ou definitivamente entrara. Não sabia o que fazer. Estava deitada. Sentiu algo nos pés. Até gelou. Mas compreendeu. Na pressa de deitar não tirara os sapatos. Nem notara até aquele instante.

 

Ficou ainda mais paralisada. Se levantasse de sapatos poderia fazer ruído no piso e quem entrava poderia agredi-la. Temeu tirar os sapatos antes de levantar – e caírem do colchão e fazerem o mesmo barulho arriscado no piso. Olhou para o piso e não enxergou o tapete. Tinha certeza absoluta que tinha o tapete. Mas sumira. Desistiu de pensar no tapete. O barulho da correntinha se repetiu. Sentiu que estava suada. Passou as mãos nos cabelos que pareceram curtos. E eram longos. Mas estavam molhados.

 

Deitada imóvel – aguardava que fosse quem fosse que entrara – aparecesse.

 

Olhou para a cortina – a janela do quarto dava para o prédio do lado. Mas deitada - não via o prédio nem a cortina. Desistiu de entender a cortina – ou a arquitetura. Vai ver era o escuro e o susto. Não conseguia assimilar mesmo a arquitetura. De repente os cinquenta metros quadrados pareciam redimensionados.

 

Encheu-se de coragem. O barulho da correntinha continuava. Ficou de pé. Estava descalça no tal tapete. Nem sabia onde tinham ido parar os sapatos. Mas ao menos lá estava o tapete macio e vermelho. Por um segundo sentiu uma confusão – de onde saíra o tapete com esta cor - vermelha. Notou uma luzinha - vinha do corredor. Mas isso era impossível. Não tinha corredor. Mas nem acabou este pensamento escutou os passos. O Tempo ficou em desacordo. O escuro só confundia e não conseguia enxergar direito. Não sabia o que fazer e não tinha para onde correr. Estava de pé descalça num tapete vermelho enquanto alguém entrava no apartamento dela. Deveria ter ido verificar a corrente mais cedo. Ou ter trancado a porta. Teve uma ideia. A faca. Dos queijos. Olhou para a mesinha de cabeceira e em meio a mais confusão viu a faquinha de cabo rosa. Caso fosse necessário usaria a tal faquinha. Mas não conseguiu pegar. Olhava para a faquinha - mas não conseguia pegar. Algo como se as mãos tivessem paralisadas. Ou o braço. Só a respiração estava forte. E àquela hora da madrugada não deveria ter um só vizinho acordado. Lembrou o relógio que ficava na parede da cozinha – mas não conseguia enxergar de onde estava. Melhor não se mover mais.

 

Queria gritar – mas não gritou.

 

Tudo que queria – parecia não conseguir.

 

Falou sussurrando – mas daqui não saio e só entra quem eu deixo - é todo meu.

 

O – é todo meu – a fez abrir os olhos de uma vez. Estava deitada – suada e assustada. Num gesto por certo corriqueiro há algum tempo – estirou o braço para o lado para segurar o braço dele. Dele. Não tinha ele.

 

Estava sozinha – foi a mensagem que o braço trouxe de volta – vazio e esvaziado.

 

Concentrada – entendeu. O pesadelo fora real. Tão real quanto o tal esvaziado.

 

Estava sozinha. Deitada na cama. A televisão estava ainda ligada - mas sem som. A cortina do quarto - fechada. Passou a mão nos cabelos e os sentiu molhados nas pontinhas. Para ter certeza de que lado estava – olhou rápido para o tapete. Verde. Não era macio – era uma tecelagem. A luz dos carros entrava pelo vidro da janela da sala – não fechara as cortinas.

 

Recuperada – levantou. A corrente estava lá presinha na parede e a porta trancada. Acendeu as luzes. Todas as luzes. Bendisse os dois lustres do teto. Saiu acendendo tudo que podia ser aceso. Abriu as cortinas. A do quarto. A da sala. Abriu até as janelas amplas. Nem sabia muito bem porque fazia isso. Vai ver era para sair o intruso. Riu. Janela a fora. E janela para dentro só entraria a Noite e os múltiplos odores acumulados pelo dia.

 

Mas isso era o de menos. Estava no próprio apartamentinho e tentava se encontrar com a realidade. O pesadelo viera como um intruso oferecer as certezas.

 

Já que estava tão suada e ao olhar o tal relógio que lá estava na cozinha em posição de visibilidade fosse qual fosse o ângulo – verificou que ainda era cedo - resolveu voltar para o chuveiro. Um novo banho poderia apagar as marcas da angústia e dormiria como desejara.

 

Entrou no banheiro. Deixou a água morna do chuveiro fazer fumacinha até os espelhos ficarem cegos. Colocou gotas de Óleo de Lavanda nos cantinhos – o vapor faria que se difundisse pelo pequeno ambiente e daria um toque de suavidade. Suavidade. Era tudo o que precisava.

 

Separou uma roupa leve e até trocou lençóis e fronhas. Quase riu lembrando a piadinha do marido traído que vende a cama do casal. Estava trocando a roupa de cama – como se elas respondessem pelo pesadelo. Ou como se tivessem traído a confiança dela de uma noite de bom sono. Mas assim fez e se sentiu melhor.

 

Saiu recolhendo tudo que fora usado. Colocou na máquina de lavar e somente depois foi para o banheiro – já enfumaçado o suficiente e com um aroma delicado da Lavanda.

 

Nem a música ela deixou de fora. Valsas. Ficaria ao som de Valsas de Viena. Nada havia que a deixasse mais normocárdica do que escutar Valsas. E no momento pareceu uma ideia solidária. Colocou as Valsas. Sem falar num pequeno detalhe – ainda estava assustada. Muito assustada. A música abafaria os sons externos – que por duas ou três vezes a fizeram parar em meio aos preparativos e ir verificar a porta da saída e a correntinha. A música ajudaria também a resolver a sensação paranóica.

 

Não poderia demorar muito com a tal sessão de exorcismo onírico – dia seguinte teria que estar bem cedo já bem acordada.

 

Mas continuou mesmo que mais acelerada. Antes de entrar no banheiro – olhou para a cama vazia. Lembrou a informação do braço. Nunca imaginara que os braços dão as medidas das decisões de forma tão objetiva. Olhou para a cama. Para os braços. Para o relógio. Sentiu uma tristezinha. Entrou no chuveiro.

 

Lavou os cabelos. Passou todos os hidratantes capilares que há tempos não lembrava de usar. Sentou—se no banquinho que ficava no box e fez até esfoliação de pés e cotovelos. Estava mesmo indiferente ao horário e privilegiando o relaxamento. Ou querendo se separar do que sentira muito mais do que sonhara.

 

Mas a noite ainda tinha muito que oferecer.

 

Quando saiu do chuveiro – lembrou. Colocara as toalhas também para lavar logo depois que optou por descartar desta forma o tal pesadelo. A esta altura giravam na máquina entre lençóis e sabão.

As janelas estavam abertas em parceria com as cortinas. As luzes da casa acesas. E o local onde guardava as toalhas de banho ficava do outro lado do banheiro e de frente para as janelas. Benditos cinquenta metros quadrados e a arquitetura do prédio vizinho. E ainda era cedo – não havia vizinho dormindo. Isto aconteceu no pesadelo anterior. Neste agora e de olhos bem abertos – tinha até vizinho na varanda com a família.

E lá estava Leticia mais uma vez lembrada pelos braços que estava sozinha. Não tinha a quem pedir. Isso era fato. E contra os fatos não há argumentos. Frase antiga – mas vingativa.

 

Mas nada que não pudesse ser rastejado. Foi o que decidiu. Abaixou-se. Toda molhada – engatinhou. Veio à mente uma observação de uma amiga Neurologista – quem não engatinhou quando nenê – não sabe engatinhar quando adulto. Fica com a coordenação para sempre comprometida. Enfim agora sabia – engatinhara quando nenê. Não sabia a validade ou a funcionalidade da conclusão – mas ali estava ela. Engatinhando com perfeição. Pernas e braços – os tais braços apontadores de faltas e perdas – ritmados e perfeitamente coordenados. Os cabelos e cremes hidratantes capilares pingavam deixando as marcas da desatenção no piso trocado pelo senhor maravilhoso – e no tapete verde de artesanato.

 

Tudo isso pensava e ria. Ria. Muito. Devia ser consequência daquele sintoma antigo. Baixara o oxigênio cerebral mais uma vez. Era o mínimo que podia fazer diante de tal cena. E ria mais.

 

Mas conseguiu.

 

Quando finalmente se deitou – depois de ter ido algumas vezes se certificar da tal correntinha na porta – respirou fundo. Olhou as janelas e as cortinas fechadas. A roupa de cama trocada perfumada. Um cheirinho de Lavanda ainda enfeitava os cinquenta metros. Com a mão percorreu como numa carícia o espaço amplo do colchão.

 

Antes de se entregar aos cuidados de Morfeu e rir disso – pediu a ele um pouco de comiseração. E uma noite de sono restaurador e reparador.

 

Deve ter atendido. Na manhã seguinte nem bem entrou no local de trabalho e escutou de lá – bom dia – está sempre bonita e cada dia mais. Precisa me contar o segredo.

 

Sorriu - não para a amiga que assinalava a mudança – mas para Morfeu. Enfim pareceram ter se entendido. Ao menos por uma noite.

 

 

publicado por Lêda Rezende às 19:58

Dezembro 23 2011

 

II

 

Com a decisão pela nova vida Leticia conseguiu um apartamentinho como queria. Uma maravilha. Minúsculo. Não caberia o que armazenara pela vida a fora de material nos cinquenta metros ditos quadrados – mas caberia o que importava.

 

No dia de conhecer o espaço fez um ar de resignação. Sendo assim – assim é.

 

A vendedora era uma senhora viúva embora muito bem casada com a desconfiança. Temia a compradora. Temia a família da compradora. Temia o

Banco onde sairia o financiamento. Temia os documentos do Banco. Era uma temeridade que dava até para tocar de tão bem constituída. Ficara viúva há dez anos mas ainda seguia as orientações imaginárias do marido e as reais dos filhos.

 

E lá estava Leticia.  Em meio a tanta temeridade – atribuída de tanta coragem. E as duas em contraponto total iniciaram as negociações.

 

Caminhar em cinquenta metros quadrados e repletos de paredes foi como passear num estranho labirinto de só um caminho. Não tinha luz no teto. A luz era embutida na lateral de uma das paredes da salinha. A cozinha era um canto escuro por onde outra parede fazia um isolamento quase penitenciário. No quarto uma parede impedia que da sala e da cozinha soubessem que poderia haver vida útil ali dentro. Ou inútil.

Um banheirinho encerrava o percurso por onde se voltava por entre paredes.

 

Mas de frente para o que chamaria de excesso entre faltas – estavam dois janelões que abriam para um jardim do prédio vizinho. Um lindo jardim com uma fontezinha por onde circulava a água e o barulhinho dela. E a rua - a ampla avenida que ela sempre gostara.

Iria morar no bairro que adorava. Próxima de um dos filhos. Diante do local de trabalho e perto da outra avenida que também abrigava todos os caminhos do prazer. O cinema preferido. A Livraria preferida. As lojinhas preferidas.

 

Se descesse a rua - estaria diante das grifes e cafeterias.

 

Não seriam paredes em excesso e espaço em falta que a fariam desistir deste mundo lá fora. E já aprendera que fantasias e expectativas não se entendem muito bem com metragem. Tanto faz - o mundo lá fora é bem maior que esta bobagem de espaço interno.

 

E diante da viúva temerosa foi avisando com clara disposição - adorei. Vou comprar. A viúva até sorriu e comentou – assim fácil?

Não tem que ser difícil. Gostei. Quero. E se posso – vamos resolver a forma de trocas de domínio.

 

Lá se foi com papeis daqui e dali – e a sequencia se fez com a suavidade nem sempre habitual.

Assinou. Assinaram. Cada um com sua posse. Uma tinha teto. A outra tinha o pagamento.

E a viúva temerosa foi lá feliz ver a conta bancária – enfim encerrado.

 

Ai começou a etapa seguinte. Tirar o que tinha e criar o que não tinha.

 

As paredes foram as primeiras a sair do ambiente. Paredes e portas. Nunca na vida a Leticia havia lidado diretamente – ou indiretamente - com reformas. Sempre olhara de longe e com um temor parecido com o da viúva. Mas era chegada o instante. Parecia que atualmente este era o estilo. A chegada do instante. E mais uma vez acreditou que com instantes e com chegada não se menosprezam.

 

Enfrentou a reforma.

 

O senhor Everdson – nome que custou a entender e decorar – veio em auxilio. E a acalmou - fica tranquila – sou bom e pontual. Acreditou. Aliás - nada mais restava a fazer a não ser acreditar. Com todas as alterações de vida continuava trabalhando a semana toda e o dia todo. Ou confiava na palavra do senhor Everdson – ou confiava na palavra do senhor Everdson. Nada melhor que a falta de escolhas – deixa a decisão bem mais linear. Nada de gastar tempo com isso ou aquilo. Perfeito. E assim foi feito.

 

Nada de paredes. Nada de portas. Nada de iluminação indireta. Duas saídas para fios surgiram do teto. Um piso novo foi colocado. A casa se encheu de luz. Muita luz.

 

Cada dia que ia até lá – sorria. Está tão lindo. O senhor é tudo de maravilhoso senhor Elson – Evesio – Everdson. Ele ria por todos os motivos. Pelo elogio efusivo que não parecia habituado e pelos três nomes que sempre a Leticia o nomeava a cada encontro entre argamassas e fiação.

 

Até que no dia combinado ele avisou – pode trazer a mudança.

 

E ela levou. A mudança.

 

Lá estava a Leticia mais uma vez diante de caixas e caixas. Desta vez não ficou assustada – nem foi para o Hospital. Nesta parte já estava experiente desde a primeira mudança. O que repetia era apenas a questão espacial. A Leticia podia entender de tudo - menos de espaço. Sempre considerava o espaço visual bem maior do que o real - aquele que se mede em metros. Este era complicado. Pelo visto era um sintoma – sem cura.

 

Mas enfim. Uma parte do que não coube deu aos funcionários da transportadora. A porta fechou.

Ficou ela e as caixas.

 

Não bem assim. Eles estavam lá. Os filhos e as norinhas. E lembra em especial do filho mais novo – o Roberto e da Cecilia – que se abraçaram a ela e pulando diziam – é seu! É seu! É seu! E riam muito mesmo em meio às tais caixas.

 

Caixa é o de menos. Um dia elas todas são abertas e desaparecem. Só isso. Tudo se resume numa questão de tempo em boa relação com o espaço. Somando a esta relação - uma tesoura para cortar os adesivos e um latão de lixo para descartar as caixas. Acrescentando ainda a ajuda da amiga Lilian que chegara de viagem para uma temporada na cidade e que ia - todos os dias - ajudá-la. Junte-se também a metodologia do

Luciano que num domingo foi até lá e resolveu que caixas amontoadas e pouca metragem não fazem parceria agradável – e com boa vontade e força muscular dispensou as caixas esvaziadas. O resultado desta soma foi igual a - casa arrumada.

 

A acomodação final se resolveu com o caminhar pelo apartamentinho. E o que pode ser movido – por certo pode ser adequado. Numa casa sem paredes – tudo pode ser movido. O limite passou a ser apenas a casa do vizinho. Sorriu no dia que concluiu isso.

 

Eis algo que nunca conseguiram tirar da Leticia – o bom humor. Juntava este tracinho estrutural com o pragmatismo e a impulsividade inerentes e jamais se conseguiria – logicamente - fechar a conta.

 

Com os cinquenta metros quadrados bem preenchidos e sem labirintos estranhos para circulação – sem caixas mais à vista - a vida foi retomando o ritmo de sempre.

 

Acordava cedo. Muito cedo - para trabalhar. Entendeu que esta foi uma pirracinha do Universo. Toda a vida detestara acordar cedo. E agora se via prisioneira de um despertador – objeto que odiava tanto quanto o horário que ele alardeava aos quatro cantos dos cinquenta metros – centímetro por centímetro. Durante toda a semana – incluindo o sábado – trabalhava. Muito.

 

Mas inegável que estava feliz. Sentindo-se plena e sob a própria conta e autoria – sentia-se dona absoluta da própria vontade. Durante tantas décadas nunca se sentira tão independente. Das compras à música – selecionava o que queria. Dormia quando querida. Como queria. Jantava se quisesse e o que quisesse. Falava ao telefone ou se calava. Até as unhas decidiu pintar na hora que queria. Encerrou por um tempo as idas ao salão por conta desta sensação lúdica. Faço o que quero e quando quero. Estava se sentindo solta. Leve. Olhava até os pés – numa metáfora divertida. Agora eu comando.

 

Esse era o pensamento constante.

 

Estabeleceu algumas rotinas – também sob a própria voz de comando.

 

Deixava as janelas abertas – e cuidava das plantas. Esta uma novidade. Nunca fora atenta à plantas. Mas agora era. Cuidava com um carinho especial. Não havia dia que não as regasse com todo o cuidado. Quando uma delas ficou fraquinha – correu a uma floricultura perto e consultou a mocinha que se dizia entendedora e recomendou uma vitamininha especifica. Ameaçou – se algo de mal acontecer à minha plantinha vou procurar o conselho tutelar das plantas e lhe denunciar. A mocinha sorriu.

 

E a plantinha se recuperou verdinha de todo.

 

A outra das rotinas era sair de casa deixando tudo no lugar certo e perfumado. Organizava a cama. As roupas. Abria as tais janelas para as plantinhas receberam a luz do dia. Afastava as cortinas. A cozinha ficava impecável – sem paredes e sem objetos fora do lugar. Toalhinhas penduradinhas. Bancada organizada. Antes de fechar a porta para sair – mesmo tão cedinho – ainda dava uma última olhada para se certificar que deixava tudo na mais perfeita ordem. Ainda dava uma apertadinha no spray que colara numa das colunas sem paredes – para que o aroma de lavanda deixasse o ambiente saudável.

 

Quando voltasse – fingiria que uma fadinha fizera tudo isso – e encontraria a casa toda em ordem.

 

Fechava a porta e no caminho até o elevador – sentindo vontade de rir de si mesma. Nunca – jamais – em tempo algum - fora sequer parecida com o que era agora. Vai ver que a análise que fizera por dez anos causava os efeitos – dez anos depois. Nascera no lugar onde dizem que tudo é mais lento. Procedia.

 

Mas já deveria saber – quando tudo parece muito perfeito – uma falta tem que surgir.

 

Surgiu.

 

Nesta tarde a Leticia chegou mais cedo do trabalho. Nada a deixava mais em estado de euforia do que poder voltar logo para casa. Entrou. Tudo lindo e perfumado – pensou - esta fadinha é ótima.

 

Fez a outra parte da rotina. Deixou a pesada bolsa na cadeira da sala e foi à Padaria comprar o que seria o café da manhã do dia seguinte. Voltou. Preparou-se para o banho – ou ia se preparar.

 

Fazia parte do ritual separar as roupas do dia seguinte. Acordando tão cedo e tão revoltada com o despertador – seria um perigo estético deixar para escolher pela manhã. Corria o risco de sair com um sapato de cada par – no mínimo. A prudência foi uma boa conselheira.

 

Tudo resolvido – era entrar no chuveiro e depois se concentrar num filme. De repente – sempre é de repente – notou uma manchinha no chão que a fez olhar com mais atenção. Não vira antes e conhecia muito bem cada pedacinho do apartamento.

 

Mancha não seria o nome correto. Ela estava vendo mesmo. Não era sonho. Não era confusão óptica. Não era idealização de susto.

 

Era uma barata. Por certo entrara voando pela janela. Não se incomodara com a altura.

 

Uma barata sem neuroses – foi o que pensou enquanto tentava se acalmar. Um pouco de Freud quem sabe ajuda nestas situações. Mas não ajudou. A barata além de não ter neuroses de altura era muito bem resolvida. Ficou lá esparramada no meio da sala olhando as cores – vai lá saber. E tudo entre cinquenta metros quadrados. Quem sabe achou que estava diante de um castelo. Em tamanhos pequenos o mundo é vasto. Ou o mundo é vasto diante dos tamanhos pequenos.

 

Lembrou a viúva temerosa que lhe vendera os cinquenta metros quadrados. Sentiu-se quase uma alma gêmea. Deveria ter tido mais condescendência com aquela senhora.

 

Chega. Ordenou a si mesma. Está na hora de agir. Que Freud, por favor, se retire. Não. Que, por favor, Freud fique. Já era uma companhia. Pelo menos mais convincente do que a fadinha – que agora parecia completamente ausente. Deu até vontade de escrever um conto sobre A Fuga da

Fadinha. Mas enfim – voltou à realidade.

 

Decididamente Leticia não sabia o que fazer. Estava parada por trás do balcão da cozinha olhando para uma barata esparramada na sala. Discorria em pensamento sobre uma inexistente fadinha e não se movia. Nem ela nem a barata – ainda bem. Se a barata desse um passinho que fosse – faltariam metros quadrados para a pobre da Leticia correr em desespero.

 

Com a invocação pela presença do Freud – o inconsciente trouxe à tona uma cena acontecida há muitos anos. Era parecida com a atual – embora com algumas grifadas diferenças. Ainda durante o primeiro casamento e num apartamento de muitos mais metros quadrados do que o atual. Muitos mais. Não se interessava por plantas. O andar do tal apartamento era ainda mais alto. Chegou do trabalho e se sentou no sofá da sala nomeada como sala da frente. Olhou para a cortina balançando com o vento suave do final do dia. E viu uma mancha na cortina. Entre a cortina e o forro da cortina. Estranho – pensou. E se aproximou. Aproximou-se com calma – mas veio de volta ao sofá da tal sala da frente com uma rapidez de maratonista medalhada. Foi uma correria só. Lá estava aquecida e tranquila - entre os tecidos - uma barata.

Daquela vez resolveu de uma forma simples. Pegou o telefone. Pediu a ele que viesse logo para casa. Estava sozinha e tinha uma pendência que somente ele resolveria. Explicou. Detalhou. Acrescentou a própria imobilização para evitar que o motivo do telefonema dali saísse para local desconhecido. E os tantos metros quadrados teriam que ser milimetricamente vasculhados.

Ele riu. Mas encerrou o que fazia e voltou. E retirou do conforto da maciez dos tecidos – a barata. Ela já em cima do sofá – sem nenhum tipo de elegância – comemorou feliz o final do dia. Ele riu e acrescentou – desta vez pude vir – e quando eu não puder não sei o que você fará.

 

Ali estava ela agora diante da frase – não sei o que você fará.

 

Se ele não sabia – imagina ela. Não sabia mesmo.

 

Não tinha para quem ligar. Até poderia ligar – mas o ligado não iria até lá. Os cinquenta metros pareceram de repente uma imensidão. Até questionou por um segundo a retirada das tais paredes. Poderiam ter alguma utilidade agora – ao menos portas poderiam ser fechadas. Mas de portas só restaram duas – a da saída e a do banheiro. Se a barata resolvesse passear ou dar uma corridinha – estaria perdida. Ela. Não a barata.

 

Era uma questão agora dela. Aliás - muito mais dela do que da tal barata. Ainda pensou – deve ser da espécie este desconhecimento das neuroses de altura. A outra subiu ainda mais alto para ficar fazendo da cortina edredom. Sorte delas que nada temem. Corajosas em profusão.

Sem falar que de bomba atômica a era glacial – nada as extermina.

 

A esta altura – para repetir o termo – deveria estar mesmo assustada. Já estava elogiando barata.

 

Ainda tinha um outro detalhe. Espaço. Elas realmente não se interessam por arquitetura ou engenharia. São seres filosóficos. Restando algum cantinho – se espalham. E quem quiser que saia ou grite. Este mais um fato – elas não devem escutar. O que se grita em volta delas e elas nem se movem é de dar nos nervos. Algo como – quer gritar – pode gritar que daqui não sairei enquanto não me der vontade.

 

Agora estava invejando a barata. São históricas e não histéricas – pensou isso e quase sorriu. Quase. Não era situação para risos.

 

Olhou para as plantinhas. Verdes e saudáveis – que fantástico ser uma plantinha. Nem uma barata as faria correr. Só se viravam em direção ao Sol. Perfeito.

 

O que a Vida faz com as pessoas – pensou buscando recompor a sanidade.

 

Tentou lembrar as muitas formas de se livrar dela – a barata. Já haviam ensinado jogar álcool. Mas poderia tremer e a casa se inundar de álcool enquanto a barata corria feliz para outro cantinho. Poderia vaporizar com spray de inseticida. Este seria eficaz – caso ela tivesse algum em casa. Lógico – não tinha. O que não faltavam eram sprays – perfumadores. Não seria o caso de perfumar a barata. Podia chamar o zelador – mas até chegar ao interfone – ela poderia escolher outro metro quadrado além do que ela visualizava.  

Lembrou do maravilhoso senhor Elson – Evesio – Everdson. Mas até escolher o nome certo para pedir o tal socorro – a barata já teria aprendido tudo sobre metros quadrados.

 

Finalmente pareceu chegar a lembrança correta para a situação incorreta. Lembrou-se de uma amiga querida. Casara adolescente. Grávida. O casamento não deu certo. Numa noite o marido não tão adolescente quanto ela – avisou-lhe que havia se enganado. Não nascera para ser nem marido nem pai. Pegou os objetos que se considerava como proprietário - deixou as pessoas que considerava fora dos bens dele e saiu.

Ela foi morar sozinha num apartamentinho que o pai dela alugara avisando que era piedoso. A filha estava com quatro meses. Ela com dezesseis anos. Sozinhas e juntas. Numa manhã entrou no quarto da filha e encontrou uma barata. Telefonou para o pai pedindo ajuda. Falava com a filha num braço. A outra mão no telefone - e o olhar na barata. Ao ouvido chegou-lhe a resposta do pedido de ajuda. O pai dela foi lógico e específico – se você sabe fazer tantas coisas – deve saber o que fazer diante de uma barata. Resolva-se. Já aluguei o apartamento para você e já foi muito que fiz. Desligou. O olhar ficou encharcado. O telefone voltou silencioso para o devido lugar. A filha sorriu para ela. Ela deu-lhe um beijinho e a colocou com cuidado no berço. Com um sapato que estava caído num cantinho – matou a barata.

 

Nunca soube exatamente o que matara naquele dia. Mas nunca mais pediu ajuda a quem quer que fosse. Estudou. Formou-se em área de Ciências Humanas. Criou a filha que já tem vinte e oito anos. Casou mais uma vez. Nada teme – nem barata.   

 

Neste instante a Leticia jogou um beijo em direção ao nada. Mas pensava no Freud. Até sorriu. As lembranças realmente muito mais ajudam do que atrapalham.

 

Lá estava ela agora diante de si mesma. Os casamentos se foram. Os muitos numerosos metros com as cortinas ficaram para traz. Os médios numerosos metros também se desintegraram na posse. De quadrados sobraram apenas os tais cinquenta. Este - ela afirmava eufórica quando se referia ao apartamentinho – é todo meu.

 

É todo meu.

 

Por trás desta frase que acabou formulando em voz alta – repetiu para si mesma a que tinha escutado anos antes - quando eu não puder não sei o que você fará.

Igual às palavras mal saídas de dentro dela – Leticia saiu detrás do balcão da cozinha. Com uma vassoura dispensou para outro plano a barata invasora.

 

Voltou com calma. Limpou o piso com álcool. Tomou um banho como antes do fato havia planejado. Estava se sentindo bem. Muito bem. Deitou e dormiu.

 

Diferente da amiga que casara adolescente – ela sabia o que havia matado.

publicado por Lêda Rezende às 23:12

Dezembro 14 2011
I
Com os desentendimentos frequentes eles decidiram por uma separação amadurecida. Não que exista algo sequer parecido – mas entenderam ou declararam que a separação poderia ajudar na união. Mais ou menos assim. Uma Filosofia encobridora. Aliás - exatamente a função da Filosofia – sair encobrindo algumas verdades não muito suportáveis. Mas enfim. Assim decidiram.  O que não traz alegria ou ao menos não mantem a alegria – deve ser repensado. Ambos já experientes – era o segundo divórcio de cada um – compreenderam que havia chegado o instante. E com chegada e com instantes não se brinca nem se menospreza. Em geral o preço fica mais alto.
Que repensemos distantes no cotidiano. Assim falou a Leticia. Assim concordou o Luciano.
E diante de decisões só restam mesmo os atos. E os atos se fizeram presentes no dia marcado e na hora agendada.
A tristeza da listinha de pertences ficou na sombra das atividades. O trabalho foi cedendo espaço à emoção e quando notaram – já estavam os objetos em caminhões separados e eles em carros separados seguindo o que de material ficou etiquetado com o nome do proprietário. Cada um em direção ao novo suposto lar.
Esta uma sinopse que faz jus à etimologia da palavra. Pouca descrição e muita formalidade.
Na etapa posterior da separação – um passinho à frente – eles descobriram – ou ela descobriu - que algo não fora etiquetado. O que fazer nas festividades de família. Eles já não faziam parte – em dupla – das famílias opostas. Nem ela frequentava a dele – nem ele frequentava a dela. Eram células estanques sob esta óptica.
A primeira festa que os surpreendeu sob a nova Situação Civil - foi a do Natal.
Já estavam separados há muitos meses e o Natal a fez lembrar – de um modo abrupto – o tempo que passavam juntos. Lembrava o último Natal. Havia sido comemorado com toda a intensidade justificada. Até os familiares habitantes do exterior vieram se unir ao festejo. Fora um Natal dos mais felizes. As fotos eram tiradas em sequencia e por todos que tinham uma maquininha à mão. Leticia nem sabia da última festa que ficara tão feliz quanto naquela noite.
Agora estava feita a diferença.
Sim. Natal.
Todos viriam para a festa na casa do filho mais velho – inclusive ele - o protagonista do primeiro divórcio - com a atual esposa. Viriam casais e casais. Simples assim.
Somente ela estaria no singular. E pior. Combinaram presentes de casal. Um presente para o par. Perfeito. Economia em tempos de consumo sempre é bem vinda. Mas não para ela.
Leticia ficou - dias e noites - imaginando todas as opções de viagem que poderia fazer. Nem a Turquia escapou. Das excursões excêntricas às pequenas vilas na praia – todas foram passando na fantasia de escape. Viu-se de casaco e bota caminhando sob o luar oculto de alguma cidade mediterrânea. Depois no estilo intelectual por entre os bancos da Universidade de Salamanca. Descalça numa vilazinha do nordeste sem pé nem cabeça. Ou talvez no próprio apartamento servindo-se de si mesma com champagne.
Nada.
Eles não permitiriam e ainda seria maldoso deixá-los preocupados com ela.
Não tinha opção. Era encarar os casais e o casal formado pelo fruto do primeiro divórcio.
A Leticia tinha um traço estrutural interessante. Um não – dois. Era imediatista e pragmática. Dois traços maravilhosos - ou perigosos - dependendo das situações.
Interessante – pensou ela. É época de consumo. Tudo se vende. Tudo se aluga. E silenciosa deu uns passinhos em direção à varanda da sala. Olhou para o Universo. Para a terra. Apropriou-se do ar e concluiu.
Vou alugar uma companhia. Perfeito. Um par.
Os pés e as mãos foram mais rápidos que qualquer bom senso seria – no caso de – o tal bom senso - querer se intrometer.
Foi o pensamento e o ato. Bom senso de fora e os dedos já dentro do teclado digitando a Agência.
Achou uma já na primeira teclada. Parecia elegante. Desde o nome até a localização. Ótimo. E ainda garantiam a integridade moral do contratado. Riu quando pensou qual a forma da garantia ou se ofereciam a mesma garantia em relação aos contratantes. Mas deixou a parte protocolar de segurança para um segundo momento. Este também outro tracinho estrutural da Leticia. Algo tipo – agir primeiro e refletir depois.
Telefonou ainda deixando que os dedos decidissem. Ia até pensar duas vezes quando escutou o alô – sim pode falar.
Já gostou. Maravilhoso o que se começa com o Sim.  
Ia explicar à atendente positivista os motivos da comunicação. Mas desistiu. Preferiu fazer logo as perguntas. As palavras também se adiantaram ao bom senso. Pelo visto – nesta maratona de final de ano - o bom senso iria perder. Era lento.
Bom senso é sempre lento. Vagaroso - ela diria num risinho irritado. A maioria até o invoca – mas ele sempre se atrasa. E o mais impressionante é que acaba levando os louros. Sempre haverá quem diga – se tivesse mais paciência o bom senso não permitiria. E o bom senso lento que deveria ser acusado – acaba elogiado e intitulado como – bom senso.
Enfim.
Afastando com a mão a tal espera pela chegada do lento bom senso - avisou o dia da contratação – ou melhor - a noite. O estilo. Até a roupa e o idioma ela pontuou. Não queria deixar dúvidas. Era um caso de vida ou desastre. 
Assim mesmo explicou para a atendente positivista.
Ela parecia tranquila do outro lado da linha. A cada pré requisito ela respondia o Sim. Não havia dúvidas. Ela receberia exatamente o que alugasse. E o pagamento seria em etapas. A primeira quando se decidisse. E a segunda no momento do encontro. Nada de sexual fazia parte da tal contratação – que esta observação ficasse bem assimilada. Era fundamental. Era uma Agência idônea – nesta palavra ela pareceu notar uma certa gagueira se antecipando à positividade – não sabia se pelo pouco uso desta palavra ou se pela pouca utilidade para a situação em questão.
Mas a atendente continuou com tom de voz objetivo.
Somos um grupo que entende que nem sempre a solidão é conveniente. E quando não for - temos a companhia intelectual correta. Assim. Claro como dois pontos. Sem reticências nem meias palavras. Ele será seu partner – e se despedirão tão logo os efeitos adequados estejam encerrados. Nada tem de ilícito. Muito menos de atentado à moral e pudor. São contratações de companhia e diálogos. Trabalhamos com pessoas sérias e de excelente passado e presente.
E acrescentou uma observação. Ainda bem que ligara tão antes da data. Nesta época as contratações se avolumam – e quem demora não consegue mais a companhia. Em datas de congraçamento a Agência tem o trabalho triplicado.
Por um segundo sentiu-se em Estado de Ambiguidade. Tanto se sentiu enturmada – como imensamente solitária. E pensou nas pessoas que fariam o mesmo que ela. Nem pode terminar o tal pensamento ou a tal sensação de se sentir nua na neve. Assim pareceu sentir. Nua na neve. Do outro lado da linha a mocinha positivista continuou a fala e a trouxe de volta da tal neve. Ou da tal nudez. Algo a mocinha positivista se empenhava em cobrir e aquecer. Devia ser antiga na função.
Já tinha o candidato que preenchia a solicitação. Enviaria a foto de corpo inteiro e de rosto. E os dados sobre idade e preferencias intelectuais. Assim fez. Assim Leticia concordou.
Um par. Perfeito.
Falaram pelo telefone. Depois pela webcam. Francesco era o nome dele. Além do Português - falava também Inglês e Italiano. Viera para esta cidade muito garoto ainda com os pais - de uma região da Itália que avistava o mar pela janelinha da casa. Era o que de mais forte ficara gravado na memória. Crescera e estudara nesta mesma cidade – distante do mar. Trabalhava fixo numa Empresa multinacional. Nas horas de folga fazia o serviço requisitado. Entendia de cidade grande e de gente solitária. Ou de gente grande e de cidade solitária. Fez ele este chiste mas sem muita convicção que estivesse agradando. Leticia optou por deixar de lado – tanto o chiste como a convicção ou falta dela.
Mas o achou decidido e verdadeiro. Nada de falinhas moles ou tons de sedução. Agia como contratado para um evento público. Ótimo. Ficou concluído – combinado e acertado.
A noite chegou.
O mês que antecedeu a chegada da tal noite foi de pura preparação. Inegável que estava ansiosa e insegura e não necessariamente nesta ordem. Escolher a roupa que usaria foi muito mais complicado que o ímpeto de ligar para a Agência. Não havia um só dia que não ficasse diante do próprio armário ou diante de alguma vitrine implorando por inspiração.
Isso era novo nela. Quando ia às festas com ele – o Luciano – pouco se preocupava com as roupas. Até riu diante de uma vitrine mais sofisticada. Vai ver me vestia dele – e era o suficiente para me sentir linda. Agora sim. Estou em busca da minha pele. Mais ou menos assim. Os pensamentos eram tão contraditórios que vez ou outra se preocupava mais com a sanidade da mente do que com a arrumação do corpo.
O encontro foi marcado na esquina do prédio. Ele avisou que iria de moto. Uma Harley. Ela sorriu. De onde saíra a Harley. Já deu vontade de aguardar com mais paciência o bom senso chegar. Mas nada. Tocou o plano.
Na hora certa e quase sincronicamente – os dois chegaram.
Ele desceu da Harley com ares de Apolo. Realmente era mais bonito do que na foto e na webcam. Bonito e com uma elegância que acentuava ora um lado forçado ora um lado displicente. Mas não era natural. Adquirida – pensou ela. Talvez num cursinho de médio padrão. Ele a cumprimentou. Fez um elogio e beijou—lhe a mão. 
Bom. Já não tinha mais como modificar a situação. Enfrentou.
Subiram um trechinho da ladeira de mãos dadas. Como um treino de última hora. Ou a última olhada no texto que poderá cair numa prova. Francesco era alto. Ombros largos deixavam a camisa preta em queda suave. Cabelos castanhos alternavam uns poucos fios brancos. Pele clara. Barba bem feita. Observou uma pequena tatuagem no punho direito. Uma chama. Gostou. Combinaram as apresentações.
Haviam se conhecido há alguns meses numa Livraria na disputa por um único livro. Ele gentil – cedera. Ela grata – lera e emprestara a ele. E assim nasceu um afeto especial. A família dele viajara e escolheram passar o Natal juntos com a família dela. Descreveu as pessoas que estariam presentes. Falou dos filhos e enfim revelou os motivos exatos da tal contratação. Francesco parecia achar tudo obviamente natural. Como se isso fosse o comum – o rotineiro em qualquer vivente. Diferente seria algo diferente. Foi o que comentou – numa segunda tentativa de chiste. Ela entregou a ele um presentinho enrolado num delicado papel prateado. Avisou – você me entrega como meu presente de Natal. Coloca na árvore e me entrega na troca de presentes. Combinadíssimo.
Ele a incentivou a relaxar. Esqueci de lhe contar - estudei teatro por três anos. Fica tranquila.
A porta do apartamento de Aline já estava aberta. Todos já haviam chegado. Renato – marido da Aline veio recebê-la e pareceu se divertir com a apresentação do Francesco. Deu um riso de bom entendedor que não precisa nem de meia palavra. Ela riu de volta. Roberto se aproximou com a Cecilia e pareceu menos entusiasmado. Mas nada comentou. Francesco ao ser apresentado disse a ele num tom de gracejo – pode me chamar de papai.
Neste exato instante todos que conversavam – calaram. Nunca vira algo tão imediato. Nem sabia explicar quem nascera primeiro. Se a palavra papai ou se o silêncio. Mas ecoou. O silêncio permitiu a palavra papai voar pela sala e se aproximar de todos. Não faltou um só par de olhos que não tivesse girado em direção ao Francesco e em seguida ao Roberto – que educadamente apertou-lhe a mão.
Neste instante a Leticia tremeu de leve. Lembrou de imediato da tal nudez na neve.
Mas Renato veio em seu auxílio e disse sorrindo – certo papai – vamos entrando. Desta vez um novo som – riram. 
E aos poucos os olhares foram – não sem pouco esforço – girando para outros contornos.
Clóvis estava sentado num sofá mais ao fundo da sala. Parecia – como de hábito – alheio ao ambiente. Talvez tenha sido o único que olhou sem ter escutado o tal papai. Virou como num coral. Seguiu os outros. E justo ele – a tal consequência do primeiro divórcio e causa da contratação do partner intelectual. Ao lado dele estava a atual esposa – a Carmem. Vestida num longo de tom roxo escuro e justo - recostava lânguida a cabeça no ombro dele a cada vez que se dirigia à Leticia. Mas abriu um pouco mais os olhos ao ser apresentada ao Francesco.
Em cadeiras unidas sentavam-se espigadinhos e algo tímidos os pais da Cecilia. Cumprimentaram o Francesco com uma pouco de interrogação. Não pareciam entender tão rápida reintegração de dupla da Leticia.
Os pais da Aline agiam como se o Francesco fosse um velho amigo da família. Convidaram a sentar e ficar à vontade. Lilian – a mãe da Aline - não se deteve em detalhes nem em generalidades. Álvaro o pai – sempre desatento – o tratou como acreditou ser a verdade – um amigo antigo da família.
Havia ainda a tia Luiza solteira e adaptada ao Estado Civil como se um sobrenome fosse. Ou um título. Pareceu mais surpresa do que recriminadora. E a prima Camila - que morando há pouco tempo na cidade - e sem os familiares próximos - fora convidada. Não tinha um cotidiano com aquela parte da família mas mesmo assim aceitara o convite.
Leticia entendeu – num fragmento de tempo. Estar só em datas festivas abre novas socializações. Cada um busca um agrupamento – seja adequado ou não. Como se o importante fosse muito mais a agregação do que o compartilhamento. Ou o afeto e suas incontáveis formas de demonstração. Mas dispensou as ideias conceituais. Não era momento para estabelecer conceitos novos nem repensar os velhos.
A Camila era de uma beleza especial. Morena. Alta. Altíssima. Magra. Cabelos e olhos negros. Destacou os contornos da anatomia com um longo preto – sem costas. Onde passava provocava alguns olhares – mas agia como se cega fosse. Não registrava. A expressão oscilava entre o tédio e o riso social. Não sabendo bem como agir já que não era habitual entre os participantes – se refugiava numa bandejinha de pequenos aperitivos e fazia da tacinha de champagne um convidado com quem conversava sem parar. Sim. A tacinha nunca se esvaziava – ou nunca se enchia - de todo. Havia sempre a complementação que ela permitia com prazer. Segurava a tacinha com um jeitinho especial – como se estivesse de mãos dadas com ela.
Enfim. Assim estava o ambiente. Ao aroma do banquete quase totêmico se misturavam o perfume das pessoas. Todos circulavam e vez ou outra um se aproximava de algum outro para uma suposta conversinha mais codificada.
A linda árvore de Natal acesa em todo o seu esplendor dava uma sensação de boa energia ao ambiente. Os filhos e as norinhas eram todos efetivamente alegres e bem humorados.
Francesco cumpria o papel a que fora requisitado com desenvoltura. A cada gentileza a Leticia agradecia – obrigada vida. Ele sorria e complementava com um forte sotaque italiano – prego Gioconda mia. E circulava com o estilo oposto ao da Camila - como se de lá ele nunca tivesse saído. Como se nascido e criado naquele ambiente e em convívio estreito com aquelas pessoas.
Se num minuto Francesco conversava com a tia solteira – no seguinte já estava com o Clóvis comentando a própria felicidade no relacionamento com a Leticia. La mia Gioconda é una principesa. Carmem com a cabeça sempre recostada no ombro do Clóvis – buscava entender as rápidas mudanças das cidades grandes. Clóvis parecia nem saber sobre quem ele falava. E vez ou outra repetia a pergunta – de onde ele viera e com quem viera. Até o confundiu com um parente que não via há muito tempo.
Assim estava a sala. Tudo em perfeita sintonia. Comidas. Aromas. Perfumes. Música. Roberto e Renato – sempre próximos. As meninas em torno deles e dos pais. Leticia bem servida e a esta altura já relaxada com a companhia contratada. Afinal não tinha compromisso com ninguém e era apenas uma forma de se sentir menos cobrada. Nada além de uma necessidade pueril de pouca explicação. E como tudo seguia como planejado – sentia-se bem à vontade. Os filhos a tratavam com o carinho de sempre e acabaram por se divertir com a nova companhia. Mas nada sabiam sobre alugueis e contratações. Achou desnecessário. A historinha do conhecimento na Livraria fora contada de forma tão enfática que já estava até acreditando ela mesma que assim acontecera.
Par. Perfeito. Perfeitamente - não fosse a prima Camila resolver separar as mãos dadas com a tacinha.
De repente a Leticia viu uma tacinha abandonada num cantinho da mesa. A chama do punho do Francesco desaparecida. E as costas da Camila fora de circulação.
Algo acontecera. Ou estava acontecendo.
Escutou um riso vindo do salão de entrada do prédio. Um riso não. Dois. Dois risos e um silêncio. Depois dois risos e outro silêncio – este já mais longo. E mais longo o próximo e já sem riso intercalando.
Lá se sentiu de novo nua na neve. Olhou em volta. Todos pareciam estar envoltos com a festa muito mais do que com os convidados. Não pareceram notar as ausências. Sentiu um mínimo alívio.
Mas não era mulher de meias palavras. Subiu um calor tão intenso no rosto que a neve – mesmo inexistente derreteu e ferveu. Por certo em algum lugar do Alasca teve uma geleira despencada. Aguardou. Continuou agindo dentro da festividade – embora grudada ao aparelho de ar condicionado. E quando olhava para a tacinha na borda da mesa abandonada – voltava flamejante o tal calorão.
Virou para a porta. Lá estavam. Camila sorria e acomodava os cabelos atrás da orelha. Puxou de volta uns fiozinhos rebeldes que estava por entre os olhos. A camisa preta do Francesco já não caia tão suave sobre os ombros largos como no começo da festa. Pareciam descompassados.
Leticia deslizou pela sala. Chegou junto deles. Avisou – que você prossiga com a segunda parte do pagamento.
Camila – que a esta altura estava ao lado do Clóvis e já de mãos dadas com a tacinha – avisou em bom som. Ele não é mesmo seu. É alugado para que este aqui – apontou para o Clóvis - não pense que você está só. Quem aluga não é proprietário. Nem pense em me dar lições de moral. Era o que faltava. Eu pelo menos não alugo companhia para fingir parceria diante de ex-marido. E apontou mais uma vez para o Clóvis.
Carmem ergueu de um golpe só a cabeça do ombro do Clóvis.
Clóvis – como de hábito alheio ao ambiente - virou-se assustado e repetiu algumas perguntas. Isso é comigo? Por que? Eu a conheço? Eu o conheço? Alugaram o que? Eu nem moro aqui. Ele não é o pai da Cecilia?
O melhor era mesmo seguir com a festa. Aline – sábia – aumentou a música e vários tons se misturavam com a orquestra. A tia solteira avisou que estava no momento de troca dos presentes. A tacinha voltou a ser abandonada na mesa. Escutou-se um agradecimento e um beijo jogado a todos. Camila saiu deixando a imagem das costas nuas nas retinas que a olhavam. Avisou que recebera um comunicado do Hospital onde trabalhava e teria que sair. Que o Natal fosse feliz para todos. Olhou para o Francesco e arriscou uma piscadinha e um gratisima amore mio.
Francesco devia ser um bom entendedor de contas a pagar. Ainda bem. Viva os financiamentos bancários. Rápido e por certo relembrando a cara do gerente do próprio Banco e das prestações da tal Harley - Francesco fez-se de Clóvis. Não sei o que aquela moça falou. O sotaque dela é tão estranho. Deve ser devido a tantas doses do champagne. Pediu para ir até o carro dela porque iria pegar os óculos. Comentou algo sobre lentes de contato e queimor em olhos. Não entendi bem. Coitada. Tão nova.
Andiamo mia Gioconda. Vamos trocar os presentes. O seu está aqui comigo. Mas vou por na árvore. Assim você ficará surpresa ao lado de todos da famiglia.
Leticia fez-se de Carmem. Recostou a cabeça no ombro de Francesco e numa pose que tendia à própria Gioconda, cruzou os braços - e por entre os braços cruzados escaparam as unhas. As unhas.
As unhas se anteciparam e lá foram se enfiar em meio à chama tatuada no punho do Francesco.
A chama esquentou. Francesco suspirou um gemidinho. Mas nada fez. Sorriu para a Carmem que percebendo levantou mais uma vez a cabeça do ombro do Clovis – que nada notou. Controladamente Francesco comentou - ela adora aumentar minha chama. La mia Gioconda é uma regazza cheia de surpresas.
Novamente tudo parecia sob controle. Mas aquele jamais seria um Natal comum.
Quando todos sentaram em torno da Árvore para a entrega dos presentes – ouviu-se um barulhinho na maçaneta da porta. Era ele. Luciano. Contrariando qualquer possibilidade e expectativa. Viera para desejar um Feliz Natal a todos e a ela em especial. Entre um beijo e um olhar acrescentou que saíra da festa da própria família e viera até lá compartilhar o restante da noite. Com ela e com eles.
Que noite.
Francesco – experiente – foi se afastando como se lá nem estivesse. Carmem – ao ver o Luciano - de um pulo só ergueu a cabeça do ombro do Clóvis e gaguejou um boa noite segurando a nuca. Cumprimentado – Clóvis perguntou se estava tudo bem na Itália. Os pais da Cecilia se recusaram a dar continuidade a qualquer tipo de diálogo. O pai em especial se recolheu diante dos próprios pensamentos. Nada mais falou – já que nada mais entendeu.
Lilian e Álvaro se mantiveram como devem se manter numa festa de Natal – participantes e socialmente compartilhantes. O acolheram como de costume.
A tia solteira suspirou forte em direção ao Universo – comentou em seguida ao longo suspiro que o melhor presente de Natal foi descobrir como a vida pode ser sobressaltante – e foi-se para entre os braços que o Francesco abriu em direção a ela. Francesco a aconchegou e sussurrou algo no ouvido dela que a fez rir e apontar para a própria bolsa.
Quando os presentes foram abertos e a tia solteira recebeu das mãos quentes do Francesco a caixinha como se para ela tivesse sido comprada – a voz dela surgiu doce e rouca por entre o barulhinho dos papeis rasgados. Falou em suave tonalidade - foi preciso crescer para ter a certeza da existência do Papai Noel. E em seguida um estalido. Este o real comentário da tia agradecendo a bela correntinha de ouro com o pingentinho de brilhante que o Francesco sensualmente colocava no pescoço dela.
Desta vez foi a vez da Leticia olhar a própria bolsa. Quanta despesa. Mas enfim. Quem não tem paciência não aguarda o bom senso chegar. Pensou e olhou de ladinho para o Luciano que conversava com os meninos – há tempos não se viam. Desde que o caminhão levara a parte etiquetada de cada um.
Lembrou uma frase que escutava quando criança de alguma professora mal humorada. Aqui se faz – aqui se paga. Ou seria o contrário. Aqui se paga – aqui se faz. Enfim.
Em seguida ao barulho da porta se fechando – veio o barulho da moto roncando. A tia avisou que sairia mais cedo. Francesco se dispôs a acompanhá-la e não mais retornou. Do hall do elevador pareceu vir o som da voz dela – rouca - falando algo como lo sole mio.
O Clóvis levantou e foi em direção a um espelho. Parecia se sentir envaidecido por ter ocupado um lugar de tamanho destaque. A prima Camila antes de sair tinha sido bem clara quando avisou que o tal Francesco era alugado para ser exibido a ele. Não entendeu bem as razões nem os porquês – muito menos o alugado. Mas foi se olhar narcisicamente. Pena que no caminho até o espelho esqueceu o motivo. Apenas arrumou os cabelos enquanto Carmem o chamava para a sala e colocava a cabeça no ombro dele.
Encerradas as trocas de presentes e após a muito alegre e afetuosa confraternização – foram se despedindo e saindo. Clóvis cumprimentou Luciano e comentou que iria a Itália em dois meses por uns dias de férias. Ofereceu-se para levar algo que quisesse para alguns parentes que porventura ele quisesse agradar. Uns livros talvez – já que ele gostava de ir a Livraria.
Luciano não entendeu muito bem – mas dispensou a gentileza avisando que era do Brasil – não tinha parentes na Itália. Clóvis nem piscou – mas observei que você fala todo o tempo em italiano. Que interessante.
Leticia ainda deu uma última olhada para a caixinha aveludada da joalheria – vazia – que ficara num canto. Comprara aquela correntinha que tanto queria e agora brilhava no pescoço da tia Luiza – que por certo percorria a cidade sobre a Harley.  
Os meninos felizes olhavam os presentes que deram e receberam e riam ainda das ideias da mãe. Só Roberto ainda fazia uma birra leve pelo - pode me chamar de papai. Renato somente ria. Aline foi reorganizar a mesa das comidinhas. Cecilia tentava explicar aos pais que o importante mesmo é deixar circular o amor que a noite de Natal reforça.
Depois do último brinde - Leticia voltou para a casa dela. Luciano para a casa dele. Ao abraço da saída ele acrescentou para ela - vamos seguir nos falando. Ela concordou sorrindo. E num gestual impetuoso – passou as mãos sobre si mesma – e gostou de começar a se vestir com a própria pele.  
Numa noite de muita chuva - a tia Luiza veio para uma visitinha rápida. Havia muitos meses que não aparecia. Desculpava-se por muita ocupação. Viera se despedir por motivo de uma viagem não planejada mas desejada.
Ao erguer o braço para um cumprimento mais afetivo – viu-se no punho dela - da tia Luiza - uma tatuagem. Uma chama. E dentro da chama vermelha uma letra. F.

 

 
publicado por Lêda Rezende às 22:59

Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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