Blog de Lêda Rezende

Junho 17 2010

 

O trajeto não é dos melhores. Não posso negar. Estou sempre assustada. Isso sem falar no sono. Sempre reclamei destes horários. Sempre detestei acordar cedo. Não falei alto o suficiente. Ou alguém está de picuinha comigo. Porque tudo encerra um horário cedo. Cedissimo. Quando o despertador toca sempre me dá vontade de rir. Dever ser uma piada. Acordar alguém tão cedo. Para trabalhar.

 

Coisa mais aflitiva.  Acender a luz do Edson para aguardar a luz do Hélio. Pronto. O contragosto me fez agora letrista. Repentista. Enfim. Viva a origem. Desta sim - ninguém escapa.

 

Melhor parar com isso. Já estou aqui mesmo. Deixa-me concentrar nas pessoas. Trouxe até um livro. Mas as pessoas me parecem mais interessantes. Não fossem aqueles avisos a cada dez minutos e seria mais fácil. Suportar. O trajeto.

 

Os avisos me lembram um filme que assisti. Uma voz avisa. Informa. Ordena. Sem discussão. Quem vai discutir com uma voz. E não tem imagem. Só avisos sonoros. E os mesmos. No filme todos estão mortos.

 

Aqui resta uma dúvida. Acerca desta questão.

 

Melhor também parar com isso. Vou voltar a me concentrar. Nas pessoas. Pelo menos nas que parecem vivas. Ri. E me olharam. Desconfiados. A mocinha que está dividindo o assento comigo se afastou. Delicadamente.

 

Então ela adora crianças. Ah certo. Trabalha numa creche. Num bairro de população carente. Atravessa toda a cidade. Para cuidar das crianças. Das mães. Da carência. E faz isso com a maior alegria. Parece tão sem vaidade. Mas aponta o orgulho de ser bondosa. Disse que é bondosa. E ergueu os olhos. Acho que agradeceu ao Criador. Não sei se dela. Ou da bondade dela.  A outra moça a olha encantada. Também faz parte de um grupo assistencial. Ela. Não a outra moça. A outra moça só escuta. Acho que escuta. Vai ver está bem longe. Ou faz parte do grupo do filme.  Ri de novo.

 

A mocinha decidiu mudar de assento. Sempre falo isso. Se tivesse chorado ela se aproximava. Como ri se afasta. Acho isso incrível. Bom. Deixa pra lá. Afinal ela tem razão. Deve  mesmo ser sinal de insanidade. Alguém rir - sozinho - esta hora da manhã. Neste tipo de meio de transporte. Para ir ao trabalho.

 

Procede. Mais um riso e até eu me afasto de mim. Pior agora. Ri de novo.

 

Quantas crianças. É uma creche. Impossível conter o riso. Com a frase que ela falou. Quando a mãe é fácil, é fácil. Quando a mãe é difícil, é difícil. Preciso escrever isso. Se eu contar isso a ele sei o que vai dizer. Que vai tatuar esta frase.

 

Ele deve estar lá. Ainda não acordou. Quando acordar vai ligar. Vai querer saber se cheguei bem. Faz isso todos os dias. E fica preocupado quando demoro em atender o telefone. E respira aliviado ao escutar o alô. Ele está triste. Tem falado pouco. Cada dia menos. Quando está feliz é que fala. E ri. Agora fala pouco. E se aborrece muito. Vou sugerir o contrario. Assim que tiver com essa coragem toda. Não ele. Eu.

 

Ri. Lá se vem outro olhar assustado em minha direção.

 

Então ela também ajuda um orfanato. Não deve nem dormir. Deve estar esgotada. Ou não se importa em acordar cedo. Bem diferente de mim. Agora me senti péssima. E ela ainda faz isso voluntária. Sem honorários. Eis a bondade em pessoa. Agora eu que estou encantada. E arrasada. Com meu baixo teor de bondade. E vai ver nem se incomoda. Com os avisos repetidos. Eu sou mesmo de má qualidade. Preciso arrumar uma penitência. Outra. Porque esta já deve ser uma. Ri. Com mais sutileza.

 

Nem tinha notado. Aquela outra mocinha ali sentada. É filha dela. Saiu do lado dela porque estava com o sol no rosto. Está tão quieta. Tem lentes tão grossas nos óculos. Deve ter uma lesão importante. Não olha para ninguém. Nem se move. A mão no queixo. Cotovelo na barrinha de ferro. Absorta. Escutando música. Acoplada ao ouvido. Essa foi uma boa invenção. Tudo bem que ainda faltam computadores. Acoplados ao volante do carro. Mas orquestra acoplada ao ouvido é perfeito. Uma tecnologia maravilhosa.

 

Voltando à mocinha. Também cuida dos carentes. Igual a mãe. Deve ser ligado ao DNA. No meu faltou. Então a culpa não é minha. Que fique atento a isso o russo. Sem castigos.

 

Que música será que está escutando. Parece tão distante. Nem o abrir e fechar de portas ordenadas pelo apito a faz se mover. Nem os olhos. .As pessoas saem. Entram. Ela não se move. Agora me assustei. Mais. Tomara que não seja eu a única. Viva aqui. Lembrei do filme. Ri. Daqui pra frente vou selecionar bem. Os filmes.

 

Agora sim. Meu susto foi campeão de susto. Primeiro lugar num concurso de sustos. Quero uma medalha. Um título. Um busto. Mas ela é tão bondosa. Tão disponível. Dedicada aos carentes. Como falou assim. Com a filha. A mocinha de óculos de lentes grossas. E ouvidos musicados.

 

Informou por entre os dentes. Devem ser de serra. Os dentes. Serra de aço. Porque saiu cortando. Falou assim. Quero lhe esganar. Quando você coloca esta música. No ouvido. Quero lhe esganar. E tomara que tenha um acidente. Dia desses. E você vai morrer. Porque não vai escutar. Os avisos de perigo.

 

A mocinha levantou. Não sei se escutou o que a bondosa senhora falou.  Mas desligou a música. Guardou. Desceram juntas. Ainda deu para ver a senhora bondosa. Falando soberana ao ouvido da filha cabisbaixa.

 

Quando chegou a minha vez - desci. Ainda ecoava em meus ouvidos a frase dela. Ela conseguira ensurdecer até os avisos persistentes.

 

Lembrei de um amigo distante. Psicanalista. Um dia me disse - quem quer ser bondoso esquece de ser generoso.

 

Pertinente. O russo agora me isentou.

 

 



publicado por Lêda Rezende às 00:28

Junho 05 2010

 

 

Cheguei exausta.

 

Subi e me lembrei de uma possibilidade relaxante das melhores que conheço. Um Bom Banho de Banheira.Mas não seria este um Banho qualquer. Seria assim. Com letras maiúsculas.

 

Preparei um ritual.

 

Acendi velas em volta. Apaguei as luzes. Coloquei um incenso mais afastado. Fiz um chá. Até mesinha e banquinho ficaram a postos compondo o cenário. Em cima dela, da mesinha, o mini DVD. O russo tocando cello. Divino. O ambiente. O russo também. Lógico.

 

Enchi a banheira com água bem quentinha. Desliguei o telefone. Que alegria poder decidir e comandar estes pequenos mimos. Foi o que pensei ao me deitar na banheira.

 

Lá fiquei. Nem lembro mais quanto tempo. Tempo foi o único detalhe que deixei fora do cenário. Fechei a porta e o deixei de fora. O espaço estava mais que suficiente. Adoro quando separo esta parceria de espaço e tempo. Só isso já relaxa. Ela dizia que deveríamos ter um botão. Para desligar os pensamentos. E assim descansarmos.

 

Acho que quase encontrei o tal botão.

 

Chega. Agora sim. Relaxada. Tranqüila. Ainda na banheira - puxei a tampinha. Para que a água escoasse aos poucos - comigo ainda dentro. Para que a minha pele fosse se adaptando.

 

Já quase esvaziadas. Ela – a banheira - da água. E eu - a suposta madame - do cansaço. Sai. Da banheira. Coloquei o pé no chão. Do banheiro.

 

Confusão mental.

 

Outra banheira. Não entendi muito bem de imediato. É preciso um sacolejo para que o raciocínio acorde quando está descansado. Ou vai ver desliguei o tal botão. E demorei a encontrar o lado certo de ligá-lo de uma vez.

 

Toda aquela maravilhosa água saíra não para o – digamos assim - continenti hidráulico. Saíra para o piso. O chão. Do banheiro. Algo acontecera e a água saíra para longe do lugar devido. Direto para o indevido. Estava inundado. Inundado. Mais uma vez me senti num desenho animado. Meus pés e mãos – hirtos - colados no teto. Meus olhos com as molinhas saltadas para fora. Mas mal deu tempo do tal desenho. O ideal seria mesmo correr atrás do prejuízo.

 

A mesinha foi tirada às pressas. Era uma mesinha antiga que ela tinha me deixado antes de ir para além-mar. Temi pelo fim. Da mesinha. O fio do mini DVD quase se dispunha a eletrocutar o russo e o tal cello. O incenso dançava apagado sobre as águas. O tapetinho afundado ainda se oferecia à função ao lado da banheira. Mas nem tudo acaba por aí. Deixei as velas de lado e fui acender a luz. Luz. Muita luz. Para ver bem o estrago. Pela porta a água saía em direção à escada.

 

Corri. O mais que pude. Munida de vassouras - rodos e paninhos. Corri para conseguir conter – a tempo - aquele dilúvio invertido.

 

Em meio ao corre-corre me deu a impressão de que escutei um risinho. Vindo não-sei-de-onde. Conclui. Deve ter sido o Tempo que eu tinha deixado de fora. Com o Tempo não se brinca. Ele não tem bom humor. E nem se entende solitário. Quer sempre ficar grudado em nós. Aprendi.

 

Lembrei do texto. Ele falou que primeiro você caminha. Depois as águas se abrem. Vai ver que foi porque corri. Não se abriram. Ficaram mais juntas.

 

Enfim acabei. Pisei em terra firme. Sentei na cama. E fiz a única coisa possível. Naquele momento. Ri. Cai de costas de tanto rir. As cenas e cenários. O cansaço e o relaxamento. A música russa e a enchente americana. O incenso indiano e o apelo bíblico. Ri. Muito.

 

Quando ele chegou olhou em volta. Viu vassouras e baldes. Paninhos. O chão meio úmido. Eu rindo sozinha na beirada da cama. Sábio. Nada perguntou. Nada comentei.

 

Saímos para jantar. Chovia.

 


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