Blog de Lêda Rezende

Janeiro 23 2010

 

 

É. Estou muito cansada.


Tanta coisa a fazer e não consigo me mover daqui. Deitada na cama, janela aberta.

 

Olha o que descubro. Bem ali. Pendurado e disfarçado. O vizinho.

 

Esgueirado. De olho em meus movimentos. Como se algum movimento eu fosse fazer. Vai ver está esperando eu mudar a roupa. Eu que nem consigo trocar sequer a perna de lugar.

 

Vai ter muito que esperar.

 

Algo se moveu. Será que o vizinho percebeu. Movi os músculos do rosto pensando: é essa “ansiedade bancária”. Toda vez que vou ao Banco, lá se vai mais cansaço. Duplo. Com direito a juros.

 

E a gerente. Ela vai começar a fumar dia desses. Vive esperando depósito e só recebe expósito. Expósito foi perfeito. Sorri de novo.

 

Desta vez acho que ele viu porque levantou um pouco o corpo. Vai ver acha que tem mais alguém aqui alem de mim. Aguarda alguma sessão de sexo explícito.

 

Já estou começando a ter pena dele. Está em pior situação que a minha. Eu, ao menos, sei porque estou aqui imóvel, rindo e pensando. Ele depende de mim para se mover, rir ou pensar.

 

Depende do espaço da janela e do alcance da visão. Vive da expectativa da oferta do outro. Que nem para ele é!
Coitado.

 

Lembrei dele. Será que está pensando onde estou. Me supondo a descer e subir de prédios. E eu aqui. Deitada. Com vontade de fazer nada.

 

Ri novamente.

 

Ele e o vizinho estão a esperar meus movimentos. Nunca pensei que um dia alguém iria esperar os meus movimentos. Justo os meus. Eu que nem dançar bem sei.

 

Até um frango morto espera meus movimentos. Está lá. Esperando os temperos para se re-transformar.

 

Aquela pia da cozinha está me irritando já. Pratos e copos se espremendo. Cheiro de alho. Facas. Hoje tudo está a depender dos meus movimentos. Assim vou acabar paranóica.

 

Ainda bem que o telefone avisa que tem zero recados. Se ninguém se movimentou para mim, não preciso me movimentar para os outros.

 

Quero me arrumar. Para quando ele chegar à noite. Gosto quando ele chega. Vai me pedir um vinho e vai me dizer que o serviço está cada dia pior. Aí vou rir solta. Vou levantar e trazer a taça com aquele líquido que tem a cor do calor do deserto. Ri de novo: eu a as minhas metáforas. Desde quando calor de deserto tem cor.

 

Pena que a esta altura, quando ele chegar, o vizinho já se foi.

 

E se ficou, vai se assustar. Vai pensar que de tanto eu ficar aqui deitada nasceu barba e pelos nas minhas pernas.

 

Ri de novo e desta vez olhei sério para ele.

 

Deixa só ver quando der com a testosterona substituindo a inércia.

 

Acho que eu deveria colocar uma música. Nada me ocorre agora além de um canto gregoriano. Não consigo encontrar. Também vivo trocando disco e capa. Que nem faço com a vida. Quando uma coisa pode ser encaixada, falta a caixa. Quando acho a caixa, a coisa já se foi.

 

Caixa me lembra o austríaco, objeto bem feminino.

 

Ele quer me dar uma caixa de música. Adoro caixa de música. Mas ainda não me deu. São tantas as caixas que já tenho sem nada para colocar dentro. Pelo menos esta já viria com a música colocada.

 

Bom, mas isso não dá pra resolver agora. Ainda tem o frango. O vizinho. O canto gregoriano. As pernas para mover.

 

Depois decide-se o que mesmo se coloca dentro. Ou se deixa de fora. Anda tenho que escrever um texto. E nem quero pensar em arrumar letras e frases. Citar filósofos. Imaginar o outro lendo. Me submeter ao olhar do outro com humildade mais que cristã.

 

Será que existe essa humildade. Talvez menos que cristã seja mais que cristã.
Pronto. Nem eu entendo mais o que penso.

 

O vizinho ainda está lá. Agora que vejo que ele não é tão jovem.

 

Trocamos de posição. Eu que o estou a observar. Tem cabelos grisalhos. A camisa colorida até que dá a ele um brilho de movimento. Ele se incomodou com a troca de posição. Está desconfortável e disfarça.

 

Mas vou ter mesmo que ir fazer o frango ficar feliz. Lamento, vizinho, mas um frango ficará feliz por ter morrido para ser comido gostoso e você vai ficar infeliz por ser deixado sem gosto em meio à vida.

 

Parei em meio ao levantar: coitado do frango. Precisou morrer para ser comido gostoso. Bom, melhor ir cuidar da felicidade do frango e deixar as digressões para depois. Já está na hora dele chegar.

 

E aí quem vai ficar feliz e bem viva sou eu.

 

 

publicado por Lêda Rezende às 12:21

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