Blog de Lêda Rezende

Agosto 31 2009

 

Amanhecera frio. Muito frio.

 

As nuvens pareciam amigas próximas tristes. Estavam baixas e acinzentadas. A garoa da noite dava um certo brilho no chão. O asfalto devolvia pontinhos de luz. Nas calçadas a luminosidade se fazia por inteiro.

 

Quase ri. Quase. Porque a prudência ensina a não rir quando só tem sonolentos com frio em torno. Pode parecer um pouco caso. Mas enfim.

 

O quase foi por que me lembrei daquele costureiro famoso. Estilista para ser mais respeitosa.  Lembrei do que fez com a passarela. Em seu desfile. Molhou a passarela. Para dar mais brilho. E um ar de aconchego de inverno. Ficou lindo.

 

Aqui o desfile não tinha regência famosa. Muito menos assinatura. Os passos não eram ritmados. Nem o design exclusivo. Era mesmo um faz de conta que acordei. E uma certeza do horário a ser cumprido. Mais ou menos assim.

 

E amanhecera. Com nuvem próxima ou distante. Com ritmo ou com desafino.  Muito menos com pesquisa de direitos autorais - sobre chão molhado. Era fazer o dia acontecer. Isso. Já era o bastante para um dia frio.

 

Ela sentou próxima. Tinha um ar sério. Estava bem agasalhada. Uma echarpe vermelha coloria a pele branca. E contrastava feroz com o casaco preto. Botas altas davam um ar elegante. Sentou. Acomodou a bolsa no colo. Tentou colocar o som egoísta em funcionamento.

Não funcionou. Guardou de volta na bolsa. Ergueu-se um pouco do assento. Acomodou-se como possível. Parecia conformada. Talvez precisasse escutar a música interior. Vai lá saber. Mas ficou sentada. Absorta.

 

Elas entraram falando. As duas. Sentaram de costas para onde ela estava. Não olharam em volta. Não se interessaram pelo ambiente. Estavam entretidas com o tema escolhido. E nem bem uma calava a outra já continuava. Falavam o mesmo assunto em dupla. Os comentários se sucediam. O tom de voz aumentava se a queixa ou a critica era mais forte. Não tinha música. Mas a sonoridade era vibrante.

 

Comentavam. Criticavam. Ironizavam. E se divertiam com os critérios contrariados.  

 

Ela é uma pessoa muito desagradável. Eu agüento porque às vezes me dá pena. Eu diria até estranha. Discordo. De estranha ela tem nada. É mesmo muito esperta. Observou como riu ontem no cafezinho. Ele estava perto. Ela foi logo querendo se destacar. Para mim quem gosta de destaque é blog. Eu sou bem discreta.

 

E riam. Muito.

 

Vai ver hoje. Deve chegar toda arrumada porque tem reunião. Por certo passou a noite acordada treinando. Como assim treinando o que. As caras e bocas. Nunca percebeu. Ela vive de caretinhas. No começo achei que era um tique. Nervoso. Mais risos. Vai ver já chegou lá. Deve estar escolhendo o lugar onde sentar. Para ficar diante - você bem sabe de quem. E gorda como está ficando vai ocupar toda a frente. Mais risos.

 

Algumas pessoas olhavam. Elas rindo – alheias. Não faltavam detalhes. Previsões. Análises. Conclusões. Mas nem bem fechava um ciclo – lá vinha outro. Até falavam simultâneo. O assunto parecia realmente empolgante. Afinal – vencera o sono. Desconsiderara o frio.

 

Notei que ela estava atenta. Muito atenta. A cada fala que escutava com precisão – o olhar ia se transformando.

 

Primeiro o som. Depois a imagem.

 

Tudo começou quando escutou as falas. Ergueu-se um pouco. Identificou as pessoas. Foi o que pareceu. De inicio – fez olhar de espanto. Com a continuidade – fez olhar de tristeza. Mas não se movia. Só o olhar se expunha.

 

Olhou para mim. E falou. Com voz tão triste quanto o olhar. Com as mãos apertando a bolsa.

Elas estão falando de mim. Sobre mim. Nunca pude imaginar. Trabalhamos há muitos anos juntas. E muitas vezes saímos em um final de semana ou outro. Não sabia que pensavam assim. Houve uma vez. Ela foi um pouco ríspida. E fez um critica sem propósito. Mas achei que era o cansaço. Nunca questionei.

 

Nada respondi. O que menos importava ali era uma resposta. Até porque resposta era o que mais tinha. Tinha resposta para tudo. Para o presente. Para o passado. E talvez – para o futuro.

 

Ela levantou. Ficou diante das duas. Assim. De pé. Diante delas. Com bota de salto. Echarpe vermelha. Casaco preto. Deu vontade de gritar olé.

 

Primeiro a imagem. Depois o som.

 

Disse apenas uma frase curta. Tenham um bom dia. Só isso. E um imenso silêncio se fez.

 

Fiquei pensando em sincronias. E se o som egoísta tivesse funcionado. Se tivessem se atrasado. Ou se adiantado.

 

Lembrei a minha avó. O Tempo sempre interfere no Espaço, menina, o Tempo sempre interfere no Espaço.

 

Chegou o local de descida. Ela me olhou de volta. Fez um cumprimento formal com a cabeça. E saiu.

 

Elas saíram atrás. E a seguiam de perto. Parecia que tinham perdido o esqueleto. Estavam disformes. No andar. No gesticular.

 

Ela altiva – caminhava na frente - com aparente tranqüilidade.

 

Sumiram na multidão.

 


Agosto 26 2009

 

A sala estava cheia. Cadeiras e poltronas ocupadas.

 

Não havia um só espaço para sentar. Ele chegou com ar tranquilo. Parecia sereno. Sabedor do que exatamente fazia ali. Olhou em volta. Confirmou.

 

Não tinha mesmo onde sentar – aceitou. Vestia-se elegante. Sóbrio. Os óculos de aro preto lhe davam mais idade que a pele e a postura. Rendia-se ao frio através de um cachecol. De pé encostou a um canto da parede. Abriu um livro.

 

Parecia que estava só. O seu mundo estava dentro do livro. Não fora dele. Como se estivesse em uma bolha. Uma redoma. Vai lá saber.

 

Nada o desconcentrava. Nem barulho. Nem o murmúrio das vozes de quem também esperava. Nem quando ela derrubou o envelope que segurava. Nada o desconcentrava. 

 

A expressão acompanhava o que lia. Parecia uma exposição de mímica facial. O corpo – imóvel. Os ombros encostados na parede. As mãos virando as páginas. E no rosto o reflexo do texto. Às vezes sério. Outras com cenho franzido. Outras vezes parecia que lera algo engraçado. Surgia uma meia covinha na face. Passava as páginas com suavidade. Devia ser alguém que realmente gostava de livros. Com muito cuidado o manuseava. Uma delicadeza de quem sabe como é sutil o lidar com as palavras.

 

O atendimento estava atrasado – ali ficou por muito tempo. Até me pareceu que chegara adiantado. Devia ser cuidadoso com o tempo. Como demonstrava ser com o livro.

 

Aliás - devia ser cuidadoso com tudo. Com os livros. Com a própria imagem.

 

Os cabelos um pouco grisalhos tinham um corte adequado ao rosto. Uma daquelas pessoas que, por ser discreto – acaba por chamar a atenção.

 

Conclui isso quando olhei em volta. Muitos olhavam para ele. Meio que ocupavam o tempo observando a elegância e discrição dele.

 

Assim estavam todos. A assim a sala de espera se comportava. Salvo um ou outro que levantava para um pouco mais de água – a maioria aguardava sua vez. Com calma e tolerância.

 

Uma mocinha escutava música de forma egoísta e batia os pés no chão. Uma possível denúncia do ritmo do que escutava. Um egoísmo com certa socialização. Digamos assim.  

 

A mocinha que derrubara o envelope o continha com força entre os dedos.

 

Duas moças sussurravam algo sobre amores e pudores.

 

Uma senhora fazia uma dança com duas agulhas entre os dedos. E uma mágica em forma de meia parecia surpreender a quem acompanhava os movimentos dela.

 

Foi ai que veio o que se poderia dizer - segundo ato. Se um Teatro fosse. Ou - um molto vivace. Se um andamento musical fosse.

 

Mas não foi. Não era.

 

A mocinha do som egoísta sentiu algum calor. Mesmo diante do frio precoce. Talvez causado pelo bater de pés. Ou pelo calor do ritmo que escutava. Isso não se soube. Nem foi perguntado.

 

Ela levantou. Foi até junto dele. Junto dele tinha uma janela. Abriu. Assim. Sem mais nem por que. Sem consultar. Sem avisar. Abriu.

 

Ele, concentrado – continuou a ler o tal livro. Talvez tenha erguido de leve a sobrancelha. Mas não ergueu sequer o olhar. Permaneceu de pé. Agora junto ao ventinho da janela. Mas com toda a elegância já definida desde a chegada.

 

Alguém gritou. Em alto e explícito som. Uma barata. Entrou voando pela janela. Está ali. No cachecol dele.

 

De repente tudo voava. Não só a infeliz invasora.

 

O livro voou longe. Despaginado. Quase fraturado. Aberto. Exposto. Desencapado. Uma tristeza.

 

O cachecol foi arrancado às pressas para fora do pescoço. No seu vôo sem escala prevista - se enfiou nas agulhas dançantes da mágica senhora. De onde saiu voando já mais acompanhado e foi se espatifar no chão enfiado em duas agulhas.  

 

E bem ao lado das mocinhas sussurrantes sobre amores e pudores. Que perderam os pudores – e talvez os amores – e saíram com pernas e gritos para fora de onde estavam contidas.

 

Entre gritos, vôos rasantes e acrobacias – vieram os seguranças.

 

Queriam saber onde. Quando. Quem. Esqueceram do por que. Atropelados, pelas duas mocinhas ex-sussurrantes, tentavam chegar até a senhora das agulhas.

 

Impossível.

 

O elegante e concentrado leitor agarrou um deles pelo braço e suplicou. Ao menos foi o que pareceu pelo tom de voz. Uma súplica. Dizia com voz trêmula. Matem. Matem.

 

Tem situações especificas que um simples - por que - faz falta. Tivessem perguntado o por que dos súbitos vôos e gritos – saberiam do que se travava.

Mas não foi preciso. A mocinha do som egoísta trazia entre os delicados dedinhos – uma mariposa.

 

Ela não tremia a mão porque segurava a mariposa. Acredito que a mariposa - de tão  assustada – tremia a mão dela. Da mocinha.  Disse – era uma mariposinha. Assim. No diminutivo.  

 

O segurança retirou a mão dele do braço exigido.

 

Todos se olharam. Ela olhou para todos. A mariposinha por certo – não quis olhar para ninguém. Saiu – tão logo pode - voando janela a fora.

 

Quase igual a ela – fez o leitor elegante. Quase. Pegou o livro despaginado. O cachecol desalinhado. E, pálido, saiu. Meio que voando – de tão apressado. Mas - pela porta.

 

Mas igual a ela – tremia. Só não se perguntou mais uma vez o por que. Se de temores. Ou se de pudores.

 

Escutou-se um riso vindo do cantinho da sala. Foi a vez da senhora das agulhas mágicas. Devia ter a resposta.

 


Agosto 24 2009

 

A fila estava grande.

 

Um pouco de impaciência de um ou de outro. Pernas trocadas a cada minuto. Olhares solicitando cumplicidade se cruzavam e desviavam.

 

A responsável pelo registro saiu.  Assim. De repente. Levantou-se da cadeira giratória e saiu. Parecia em busca de algum auxilio. Não deu para saber. Só se sabia que demoraria ainda mais a espera.

 

Foi imediato. A responsável saiu e ela fez uma expressão de total desamparo.

 

Era a primeira da fila. Era bem jovem. Magrinha. Não muito alta. O cabelo amarrado para trás. A roupa despojada. Uma amiga a ajudava com os poucos pacotes que segurava.

 

No momento que a moça levantou e saiu - fez aquela expressão. De total desamparo. Virou-se para os lados. Para trás. As mãos continham o que comprara.

 

A amiga não sabia muito como agir. Ao menos parecia. Porque falava nada. Estava, talvez, um pouco assustada. Só isso.

 

Outra encarregada apareceu. Séria. Não se dirigiu a ninguém.

 

Ela falou quase como uma súplica. Curvou-se sobre si mesma. Como se dominada por alguma dor forte. Curvou-se. E falou para ela. Não podia demorar. Precisava pagar logo o que comprara.

 

A nova encarregada olhou para ela. Nada respondeu. Olhou para as pessoas da fila. Indiferente. Ia saindo quando ela repetiu. Ainda meio recurvada. E com a pele pálida.

 

Meu marido morreu. Esta roupa - vim comprar para enterrá-lo. Não posso demorar. Estão esperando. Preciso ser atendida rápido. A amiga colocou as mãos sobre o ombro dela. O gesto muito mais do que ampará-la parece que a deixou mais curvada.

 

Difícil um peso maior do que o de uma perda.

 

Olhei para as mãos dela. Segurava uma camisa lilás. Uma gravata roxa e uma calça preta se embaraçavam entre meia e roupa íntima por entre os braços dela.

 

Quando se sabe que uma roupa é para vestir um morto - a roupa parece ficar mais vazia ainda.

 

Deveria ser tão jovem quanto ela. E magro. A roupa era de tamanho pequeno. Falou algo sobre os sapatos. Precisava de sapatos. Mas era tudo sempre tão longe. Um departamento do outro. Estava agoniada. Angustiada. Talvez mais que isso. Parecia portadora de uma solidão imensa.

 

Todas as decisões pareciam ganhar a cada momento mais peso. E os ombros dela pareciam – a cada vez mais - suportar menos. E se curvava a cada gesto que fazia em direção ao que comprara.

 

A nova encarregada decidiu-se por ajudá-la. Quando começou a digitar os preços – ela olhou o relógio. Repetiu sobre a pressa.

 

E mais uma vez se curvou sobre si mesma.

 

Aquela cena era tão real que já sugeria uma irrealidade.

 

Olhei para as cores da roupa que ela escolheu.
Vestia o morto de morto.
Mas pedia pressa. Não podia demorar.
Talvez a pressa em atender ao morto o fizesse - temporariamente - vivo.

Olhei para as pessoas da fila. Ninguém mais falava. Sugeria um Teatro – não fosse a Vida.

 

Os que estavam sozinhos observavam – parecendo desprotegidos. Os casais talvez mais expostos - diante da perda exposta dela. Uns se tocaram. Outros ficaram mais próximos. Outros se afastaram. Outros ainda disfarçaram como se não fizessem parte daquela fragilidade universal. Ainda teve quem abandonasse as compras nos carrinhos e saísse. Fingindo afoiteza.

 

Cada um com sua verdade ou sua mentira. Cada um escapando da certeza única pelo viés que suportava.

 

O dia era sábado. Duas horas da tarde.

 

Não pude deixar de lembrar o poetinha. Falava da perspectivas do domingo em seu poema. Pensei no domingo dela. Quando o relógio não lhe pedisse mais a urgência. Quando as roupas ocupadas se fizessem vazias. Frias. Mais vazias. Mais frias.

 

Ela pagou e saiu. Saiu acompanhada pelo olhar de muitos.
E deixou para muitos a lembrança da perda - incorporada.

 


Agosto 23 2009

 

O dia começara quase como no estilo habitual. Mas enfim. Era mesmo o último dia dito útil da semana. Já era este um bom pensamento pelo despertar.

 

Como nada é mesmo perfeito - amanhecera um pouco enevoado.

 

Mas nada de importante. Os dias estavam assim. Amanheciam com uma temperatura mais delicada. Com o passar das horas o calor dizia presente em alto e bom grau. Confiante na repetição - arrumou-se adequadamente.

 

Uma roupa leve. Sapatilha. Nada de muita paranóia de frio. Ou de excessos.

 

Estava já há muitos anos na região. Sabia como se comportar. E sabia como a dita região se comportava.  Sentiu-se quase uma especialista em meteorologia. Até dispensou ler o boletim diário. Já sabia tudo.

 

Já na rua sentiu alguns pinguinhos delicados. Uma garoa banal - pensou. Não deu novamente importância. Apressou o passo e foi em direção aos caminhos dos trilhos.

 

Não esqueceu um risinho sorrateiro. Um certo olhar de superioridade. Em direção aos exagerados com casacos, botas e lenços. Embora já tentasse disfarçar um pouco de desconforto. Estava frio. Além do habitual da semana. Enfim. Devia ser porque ainda era cedo. Muito cedo. Novamente não deu importância.

 

Parecia já um dia de rebeldia.

 

No percurso – teve uma idéia.  Iria ao cinema no final do dia. Há tempos não fazia isso. Estava sempre voltando direto para casa. E acabava desanimada de sair outra vez. Desta vez iria retomar o ritmo antigo. E saudável.  

 

Sempre gostou disso. Ir ao cinema no último dia da semana. Era como se exorcizasse os dias de tanto trabalho. Finalizava com uma viagem ao mundo da sétima arte.

 

No começo desta rotina sentia falta de uma companhia. Depois se acostumou.

 

Lembrou um conselho da avó de uma amiga. Vemos e escutamos com os nossos próprios olhos e ouvidos, menina, com os nossos próprios olhos e ouvidos.

 

Perfeito. Assim entendeu. E lá ia. Sozinha. Sem queixas. Nem pequenos pudores. Escolhia o filme. Segundo seu gosto e expectativa. Assistia. E voltava para casa certa de que se dera realmente um presente.

 

Foi esta retomada que decidiu logo cedo. Parou antes de chegar ao destino. Comprou o jornal. Precisava escolher. Tinha uma sala de cinema que ela adorava. E ficava na Avenida preferida dela na cidade. Leu a programação. Perfeito. Até sorriu. Escolha feita.

 

Agora era só torcer para que o dia não fosse tão longo. Mas aprendera também a ter paciência. Até porque ter ou não ter – paciência - não é uma questão. Em relação ao passar do tempo – é sabido – nada muda.

 

Mas a chuva realmente chegara – e permanecia. Não diminuía. Não partia. Ficava.

 

O dia todo olhou pela janela. Mas concluiu. A Avenida do tal cinema era bem longe de onde estava. Devia ser chuva por zona. Isso também era habitual nesta cidade. Ela iria para outra no final do dia.

 

Continuou otimista. Mas – prudentemente - desconfiada.

 

Acabou o horário. Desceu. Já atravessou a rua sob chuva mais forte. Garoa parecia coisa do passado. O presente era bem mais contundente. Cabelos e roupa - inadequada – molhados.  A sapatilha estava de fazer inveja. A algum habitante do deserto. Só se fosse a algum deles. Porque os pés estavam encharcadamente congelando.

 

O frio aumentara. Muito. Muito.

 

Era um mais tremer que não dava conta. Mas se esforçava. Isso era inegável. Se esforçava para ser discreta. Nada de ser olhada pelos outros no final do dia – do jeito que olhara para os outros no começo do dia.

 

Vingancinhas têm limites. E não aceitaria provocação. Do olhar de quem quer que fosse.

 

Desistiu da tal sétima arte. Entrou em casa. Gelada de frio. A roupa molhada. Os cabelos molhados. Pela bolsa os respingos marcavam sua entrada da sala ao quarto.

 

De repente o interfone tocou. Era o porteiro. Alertava -  uma correspondência sob a porta da cozinha. Foi verificar. O selo dizia algo sobre urgente e importante. E confidencial. Algo por aí. Leu no envelope a palavra Justiça. Quase riu. Era a última palavra que pensou em ler naquela altura dos acontecimentos.

 

Abriu. Era uma intimação. Para ser testemunha. Numa ação trabalhista.

 

Agora sim. Falou por entre os dentes. Faltava mais nada. Mas tentou manter a calma. Ainda gostaria de ver os netos nascerem.

 

Deixou a finada sapatilha de lado. Teve o cuidado de guardar o envelope da tal intimação. Trocou os pingos frios por pingos quentes. Desconsiderou até a salvação do Planeta. Aqueceu-se por um tempo a mais no chuveiro.

 

Já relaxada - colocou uma ópera. Achou a escolha procedente. Apagou as luzes. Fez a viagem em volta de sopranos e tenores. Numa arena. Nada mal – pensou.

 

Estava – de qualquer jeito e sob qualquer condição – deflagrado o final de semana. Que venha, então.

 

Quando ele chegasse e ela contasse – coitado dele se risse.

 

Recostada no sofá – abraçada num edredom - riu sozinha. 

 


Agosto 22 2009

 

Fiquei lendo o que ela escreveu e pensando.

 

Fui até mais além. Fui aos pensamentos por trás dos pensamentos. O que sempre é um risco para a lucidez. Mas enfim. Lucidez é coisa que se perde aqui – acha ali. É saber aproveitar do efeito elástico. Isso a vida vai ensinando.

 

Se tem conceito que não se estabelece é este. O da lucidez. Cada um faz sua leitura. Sua assinatura. Sem esquecer a crítica amadurecida e imatura. E assim se vai construindo e destruindo no dia-a-dia - a lucidez.

 

Assim pensando - fiquei diante do texto. E o texto diante de mim. Por um tempo.

 

Havia chegado tarde. E naquele estado de final de jornada. Poderia até dizer estado letárgico. Sim. Não queria mais pensar. Muito menos decidir. A jornada cobrara seu alto preço em decisões. Estava exausta. E num estilo sofisticado. Colocando as costas da mão por sobre a testa.

 

Mas vi que chegou uma mensagem. Optei por ler. Era ela. Vai lá e leia. Depois se puder comente. Um recadinho tímido. Fosse uma voz eu diria que era rouca. Mas na escrita sugeria letras minúsculas. Discreto e recatado. O recadinho.

 

Obedeci de imediato.

 

Vou ter muito que agradecer a ela. A começar pela sabedoria. E pela forma refinada de expor. Pela maneira singela. Como se me mostrasse um álbum de fotos delicadas. Timidamente impressas em papel fino. Envoltas em papel de seda. Que precisavam ser desenroladas e tocadas por mãos hábeis. Para que nada se perdesse. Ou fizesse riscos encobridores. Coisa mais linda.

 

Pela primeira vez acho que entendi. A originalidade da escrita. A força da escrita. As marcas que pode deixar.

 

Aprendi com ela. Escrever também é assim.  Escrever é como fotografar. Ler pode ser como olhar para uma foto.

 

Essa idéia me levou a lugares onde nunca fui. Vi fotos em cada página escrita. Redesenhei textos. Revelei relatos antigos. Guardei os esquecidos negativos. Fui de lembrança em lembrança enquadrando as imagens. Foi aí que rebusquei todos os cantinhos por trás dos pensamentos. Assim me senti.

 

Ela descrevia a nós todos. Coloria a descrição.

 

Era como se – olhando para o texto – lesse fotos. Como fazia aquela minha amiga. Discorria sobre as fotos. E colocava textos nas imagens. Ela foi mais sábia. Metaforizou imagens - uma a uma - no texto. E esbanjou instantâneos. Desconsiderou poses. Deliberadamente recusou imitações.

 

Ficou no silêncio. E no próprio silêncio – nos expôs. Nos organizou.

 

Impossível não lembrar a minha avó. Ela sempre dava um aviso. Nunca leia sem emoldurar as páginas, menina, nunca leia sem emoldurar as páginas. Não entendia muito bem – nem muito mal – o que ela me dizia. Achava complicado.

 

Agora sim. Tantos anos depois. Agora entendi. Até repeti aquele meu aceno positivo em memória dela. Estava correta.  Foi lendo o texto que compreendi. E consegui emoldurar as páginas. Mais ainda. Emoldurei parágrafos. Separei por cores. Por nuances.

 

Dava para ver os risos. Os dentes brancos. As taças. As cores dos vinhos.

 

Dava até para enxergar os códigos e simulações. Tudo estava na foto. As pessoas eram poucas. Cabiam num pequeno enquadramento. A moldura não deixava ninguém de fora.

 

Assim fiquei diante do texto dela. Como que subitamente despertada.

 

Compondo fotos. E decompondo palavras. E vale o vice-versa.

 

Muito mais que um limite impreciso – é um des-limite preciso. De quem escreve e descreve. Para quem lê e assimila.

 

Mesmo por trás da lente. Amparado por um tripé de letras. Até se usasse aquele paninho preto dos fotógrafos de rua antigos. Decidindo por onde começar. Como continuar. Salvaguardando ângulos. Priorizando luzes.

 

Nada impede - o fotógrafo fica na foto. Estava ela ali. Focando. Escolhendo. Gravando. Mas estava dentro. Todo o tempo.

 

Não sei se ela sabe. Se entendeu. Ou se disfarçou. Mas – independente - a mágica se fez. Esta também uma possibilidade que somente a escrita permite.

 

 

Esta é a verdadeira magia da letra. Não porque vira contra o feiticeiro. Mas porque inclui o feiticeiro. 

 


Agosto 19 2009

 

Ela viu a porta aberta e entrou para um cumprimento.

 

Sentou com suavidade. Puxou a cadeira para mais perto da mesa. Muito polida. Estava bem maquiada. Batom discreto. Os cabelos longos e com cachos soltos emolduravam a face. Tinha aneizinhos nos dedos. Uma roupa em tons claros adequada para a ocasião e estação. Assim. Toda uma lógica percorria gestos e atitudes.

 

Falava com voz serena acompanhada de um riso contido.

 

Na hora pensei esta palavra. Contida. Não dei o destaque necessário. A esta observação. Errei. Sempre que algo der um sinal de alerta – deve-se estar atenta ao sinal de alerta. Este é um princípio básico. Do Manual da Socialização. Ou da Sobrevivência. Me chamou a atenção. Mas fiquei escutando o que dizia. Ela falou. Com todo aquele jeitinho dócil. Olhava também com certa docilidade. Certa docilidade. Outra observação – notei e desconsiderei.

 

Como dizia sempre a minha avó. Fica atenta ao erguer espontâneo da própria sobrancelha, menina, fica atenta ao erguer espontâneo da própria sobrancelha.

 

Ela estava mais uma vez certa. Dava até para comparar com o mestre austríaco. Sobrancelha é o melhor analista de uma situação. De uma atuação. Como se lesse sempre primeiro que os olhos. Ou escutasse muito mais que os ouvidos. Deve ter uma ligação direta especial com o cérebro. Como sentinela. Ergue-se como sinal de alerta máxima. E nem sempre é valorizada. Acaba-se por desconsiderar esta vigilante proteção.

 

E assim foi. Lembro que as minhas sobrancelhas se ergueram uma ou duas vezes. Mas fiquei - diante da docilidade - com ingenuidade. Mais ou menos por aí.

 

Fez um gesto sobre a mesa. Arrumou com toda uma sequência os papéis que estavam em desalinho. Acariciou os papéis na ordem que colocou.

 

Ajustou mais uma vez a cadeira em direção a mesa. Falou algo sobre gostar muito do que fazia. E sobre ser uma pessoa com uma dose alta de paciência e metodologia. Até usou esta palavra. Metodologia. O serviço de casa era cansativo. Mas tinha tanta metodologia que acabava ficando mais fácil.

 

O marido a questionava. Achava que nem tudo fazia bem. Achava que tinha culpa por alguns desacertos. Em especial da saúde. Por um tempo essas observações a incomodaram. Atualmente – não. Sabia que fazia o melhor possível. E garantia que ninguém faria melhor do que ela.

 

Tinha uma mania de limpeza quase obsessiva. Mas preferia assim que lidar com poeiras e sujeiras num ambiente de convivência familiar.

 

A cada frase encerrada – ou a cada ponto de continuação surgia um sorriso. Quase como um hífen. Ligando palavras e amenos trejeitos faciais.

 

Interrompeu um pouco o que falava. Pediu com a mesma voz dócil. Gostaria de um copo com água. Estava frio. Mas sentia sede.

 

Recebeu o copo. Colocou sobre a mesa. Num movimento casual para ajeitar a bolsa sobre o colo – derrubou o copo.

 

Ai sim. Foi a vez que fiz o tal aceno positivo em memória da minha avó.

 

Era uma outra pessoa diante de mim. O copo caiu. Não quebrou. A água se espalhou sob a mesa.

 

Ela ficou vermelha. O cabelo parecia que tinha até encolhido. Ou aumentado o número de cachos. A voz parecia ter dado um adeus eterno à docilidade. Nada de voz orquestradinha. Agora era voz tempestuosa.

 

Gritou. Eu odeio isso. Odeio o que faço. Odeio a ele. Odeio ter que cuidar dos outros. Odeio cuidar da casa. Odeio essa sujeira.  

 

Desta vez acho que até meus cílios se fizeram companheiros das sobrancelhas. Mas já era tarde.

 

Tentei acalmar. Acidentes acontecem.

 

Olhou séria para mim. Olhava para a água no chão e se desculpava. E esbravejava contra tudo e contra todos. Nem escutava o que lhe era dito.

 

No final de um tempo – o tempo superou a si mesmo. Pegou os objetos que estavam já numa cadeira ao lado. Perguntou pelas horas. Ajeitou os cabelos. E saiu.

 

Olhei para o chão molhado. Para os papéis alinhados na mesa. Para a porta.

 

Precisei de um tempo para que as minhas sobrancelhas e cílios voltassem ao local de nascimento. Pareciam estar já penduradinhos no teto.

 

A mocinha da limpeza entrou. Apagou o registro. O dia prosseguiu. Embora diferente do jeito que começou.

 

Recuperada - relembrei meu querido amigo indiano. É a água que cuida da limpeza. Seja da forma que for.

 

Consegui até rir.

 


Agosto 16 2009


Ela sempre alertava. Muitas vezes as faltas são tantas que acabam ocupando lugares indevidos.

 

Não sei se são muitas. Ou se estão muitas. Ou se as vemos muitas. Meio complicado falar de falta. Expõem metades. Pelas metades. É sempre um paradoxo.

 

E pela metade muitas vezes são as explicações. E os excessos ambíguos da falta de explicações. Os descuidos com as gentilezas. O desuso das delicadezas.

 

Eis um terreno fértil. Com enorme rapidez fica-se pleno de faltas. Falta de interpretação. Falta de motivos. Falta de compreensão. Falta de confiança. Falta de lealdade. Falta de reciprocidade. Falta de conclusão. Falta de solidariedade. Falta de afetuosidade. A antiga e sempre conceituada falta de paciência. Isso sem esquecer a falta de compostura. Ou a sempre citada falta de condescendência. Que tantas vezes é aliada da falta de coragem.Ou da falta de conceito. Mas não se pode esquecer jamais - a falta de resposta.

 

Assim eu estava. Diante deste redemoinho de faltas. O telefone tocou. E o som fez um corte no tempo das faltas. Por que nas faltas do tempo isso já é comum.

 

Ela viera por uns dias. Rápidos. Era uma festa de família. Teria que participar. Mas conseguiu uma breve saída. Para vir até aqui.

 

Aguardei feliz. Chegou feliz. Desbravadora e vencedora dos trilhos. Nos trilhos. Confiante na decisão. Sorridente com a conclusão. Impossível errar o caminho. Já começamos a rir desde esta frase. Muito mais que uma frase.

 

Tudo reafirmava os caminhos trilhados. Não no destino. Mas na Vida. E certos. Ao menos parecia até o momento.

 

Quando sentamos para o vinho – nos repetimos. Rimos e choramos. Como no tempo das inaugurações do exílio. Ela no dela. Eu no meu. E o som das teclas fazendo vínculo entre nós duas.

 

Foram tempos difíceis. Mas nunca em tempo algum nos falamos tanto.

 

Nunca contamos tanto uma sobre a outra. Nunca soubemos tanto de nós.

 

Ali sim. Não havia falta de assunto. Eis uma falta abolida. Enfim uma. Até comemoramos. Podia faltar tudo. Mas nossa conversa era abundante. Um mais jorrar de palavras. De comparações. De questionamentos. De textos lidos. De textos a ler. Ela reclamava a impossibilidade do trabalho externo. Eu invejava o ócio temporário. Dela. E ela ria da minha agenda se construindo. Ou se paginando.

 

Descobrimos o sabor das páginas. Que só passam a existir quando preenchidas. Só se folheia o que está preenchido. Parece óbvio. Mas nem tanto. Páginas em branco são completas. De faltas. Não se brinca de olhar para elas por muito tempo.

 

Lá um dia me avisou. Arrumei as malas. E voltou para as raízes.

 

Depois disso – alguns hiatos. Um silêncio. Um retorno. Uma noticia. Um bilhete. Um sufoco. Um até mais. E por muito tempo nos afastamos. Da nossa história. Da nossa rotina. Até que um dia – faltou assunto. E sobrou silêncio. A tristeza - por saber mais faltas – se fez presente.

 

Agora estávamos ali.

Naquele momento. Sentadinhas nas cadeiras - na cozinha. A tentar atropelar o mínimo possível. Os relatos. Os excessos do - eu me lembro. Os inúmeros - você não sabia. Incontáveis - nem sei por que não lhe disse.

 

Quase foi preciso contratar um cronômetro.  De emergência. Ou uma nova emenda. Uma legislação de urgência. Você fala. Ela fala.

 

Fez um comentário. Sobre duas coisas que fazia bem. Dirigir e criar. E torcia pelo futuro. Para continuassem sendo elogiadas. Mesmo que num tempo passado. Rimos porque não faltou tempo. Achei genial a informação. E o pedido. Daria até para inscrição em pórtico. Passado. Presente. Futuro. Numa única eleição.

 

Mas enfim. Lembrei do Filósofo santificado. Ele falava isso. Que não existe futuro nem passado. Só presente. Porque é nele que falamos. Seja em que tempo for. Perfeito.

 

Quando nos despedimos – já todo o velho código estava re-paginado. Os risos resgatados.

 

As faltas pareciam diminuídas. Mas nunca se sabe. Talvez tenham escapado pela porta da saída. Ou ficaram atrás das cortinas. Ou se esconderam como poeira sob o tapete. Até ri quando pensei nisso. Pode-se passar a Vida toda permitindo que ele acolha faltas e erros. Deixando por cima risos e acertos.

 

O tapete como o Presente do Filósofo. Salvaguardando. O Futuro do Presente. Eis a enevoada solução. Arriscada por certo. Pisar sobre faltas é atividade que requer arte. Muito mais que sabedoria. Até por que quem sabe – não pisa.

 

Mas como dizia a minha avó. O que falta e o que sobra é sempre misterioso, menina, o que falta e o que sobra é sempre misterioso.

 

Olhou para trás. Deu um sorriso. E lá voltou pelos trilhos até o encontro agendado para a festa. Dia seguinte voaria cedo para as raízes.


Agosto 14 2009



Tem sido uma semana de muita emoção. Emoção feliz. Ainda bem. 

 

Não pude deixar de lembrar a letra daquela música. Sim. Tem que ser guardado debaixo de sete chaves. Dentro do coração.E assim está. Desde o primeiro contato.

 

Lembro que ele reclamou. Por escrito. Apresentou-se dizendo que gostaria de comentar um texto do meu blog. Mas devia haver algum problema com a plataforma. Nunca conseguia. No dia que publicou - festejou. Por escrito.

 

E do lado de cá – eu dava pulinhos de alegria.

 

E desde que nos conhecemos - mesmo sem a imagem real - uma gentil amizade se fez.

 

Uma noite surgiu uma possibilidade. Convidou. Aceitei. Lógico. Combinado. Íamos nos conhecer. Pessoalmente.

 

A amizade fez laço forte. Estendeu-se até a família. O riso selou o contato. Apertos de mão confirmaram o afeto. E a rotina não impediu a comunicação.
Perfeito.

 

Esta semana a surpresa. Me avisou. Seu blog vai para a Rádio. Assim. Com todo o carinho. E com o jeito atencioso de falar. 

 

Assim será.

 

Meu querido amigo Marcos Masini - do blog Divã do Masini - me dá a honra de oralizar o meu blog. Blog verbal. Direto. Sonoro. Maravilha. Vai ter um espaço na Rádio Unifran.

 

Nesta sexta (14/08), (às 13 horas em Portugal,) o blog da Lêda Rezende será a grande estrela do espaço que o Divã do Masini tem na Rádio Unifran FM - a ideia originou-se na promoção "Seu blog pode virar programa de rádio". Clique na figura (na data e horário sugeridos) e você vai ouvir a programação online e conhecer um pouco sobre a vida da Lêda e o seu blog

 

Nesta sexta, 14 de agosto, às 13:00 h - em horário de Portugal. Ouça o programa ao vivo, clicando aqui.

 

Como dizia minha avó. Quem quer ter surpresas felizes tem que ter amigos, menina, quem quer ter surpresas felizes tem que ter amigos.

 

Muito obrigada ao Jornalista/amigo que me concede este espaço. Muito obrigada ao Amigo/jornalista que me presenteia com esta enorme oportunidade.

 

Esta noite  - Morfeu vai se ausentar. Vai ser bem difícil dormir.
publicado por Lêda Rezende às 00:06
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Agosto 13 2009

 

Ele escolheu o lugar. Eles concordaram. Nós aceitamos.

 

Estava tudo perfeito. Nada fora do estilo habitual. Marcaram a hora de nos pegar. Com eles dois iríamos encontrar já no lugar combinado.

 

Começamos a nos arrumar. Tudo com muita calma. Ainda fazia parte dos festejos. Mas agora imitávamos – em parte - o título do livro. Seis. Não éramos. Somos. E lá organizamos os seis o restante das risadas e congratulações.

 

De repente uma idéia.

 

As idéias são assim. Nunca sabemos se estão contra ou a favor. Ele sugeriu. Uma taça de vinho antes de chegarem. Depois descemos. Dá tempo. Aliás – tempo é o que mais temos hoje.

 

Concordei. Procedia.

 

Já arrumados – iniciamos nosso festejo particular.

 

Sentamos diante da mesinha. Organizamos taças e guardanapinhos. Tudo com muita delicadeza. Em tempos de comemoração toda a gentileza é pouca. Ele, cuidadoso, foi se adiantando – eu lhe sirvo.

 

Abriu a portinha de vidro. Olhou. Escolheu. Pegou a garrafa que descansava na prateleira.

 

Solidária a tal garrafa. Ou a prateleira. Não quis vir sozinha. Veio em conjunto com mais três. E foram abruptamente ao chão. Assim. Sem mais nem por que. Sem maiores explicações. Sem menores detalhes. Sem grandes considerações.

 

Caíram. Unidas. Deviam ser da mesma videira. Vai ver vieram na mesma importação. Nascidas e criadas juntas. Um primor de união. Pensei num daqueles milésimos de segundo. Que surgem diante destas pequenas tragédias. Concessões do bom humor que ajudam a manter a sanidade.

 

Por um segundo antes o cenário parecia em ordem. O piso branco. Os tapetes – azul e branco. As cadeiras com a madeira envernizada bege.  Os sapatos com tom e brilhos corretos. A saia longa colorida dava um toque informal. A calça de um jeans acinzentado já avisava da chegada do inverno. Assim. Tudo sob controle.

 

Por um segundo depois – o cenário já se re-organizava de forma espontânea. Pelo piso branco escorria apressado e caudaloso o líquido vermelho. Os pedaços de vidro sugeriam um mosaico sem limites sob o brilho da luz do teto. Os tapetes afogados pareciam ter engordado de repente. E lentamente a cor deles ia mudando. Muito mais lenta e no inverso da nossa. Nós rapidamente de corados passamos a brancos. Esverdeados até diria.

 

Os sapatos. Estes sim. Se adequaram rapidamente ao ambiente. Vermelhos e com lasquinhas de vidro. Pareciam os sapatos mágicos daquele filme clássico-preferido dos irmãos do Norte. Só não tínhamos as pedras amarelas para seguir. A saia – mais colorida que antes - pingava o vermelho com uma delicadeza especial. A calça – já distante do tal jeans acinzentado - não mais anunciava o inverno. Homenageava uma arena. O touro já tinha vindo. E - certamente - vencido.

 

Não mais havia espaço sem cor. Ou vazio. Exceto dentro da portinha de vidro. Lá sim. Tudo continuava com a temperatura mantida. Nos espaços projetados. Com a calma da frieza. Ou com a frieza da calma. Aquela altura não dava mais para ser teórico.

 

Entre pulinhos para não aumentar a composição do tal mosaico e corridas aos paninhos para diminuírem a tal arena – o riso se fez.

 

Impossível nos olhar e não rir. Uma pergunta não calava. Falamos mesmo o que a respeito da sobra do tempo. Mais risos. Panos jogados às pressas.

 

Roupas trocadas como se num desfile de modas – tamanha a ligeireza dos gestos. Sapatos retirados com cuidado. Telefone tocando. Avisos de – já estamos aqui. Podem descer.

 

E nós ali. Entre os verbos. Poder. Querer. Dever. Descer.

 

Escolhemos o verbo - telefonar. Avisamos a ela. A ela. Quando chegar amanhã pela manhã – cuidado. Quatro garrafas de vinho se quebraram. No chão. Acho que escutei um possível o que. Com alguns decibéis mais sofisticados. Não sei bem.

 

Desliguei.

 

Talvez esta tenha sido uma frase da minha bisavó. Já não posso garantir. Se não tiver a solução – apenas feche a porta. Sugestão obedecida – ato praticado.

 

Já no carro - vi um brilho na meia dele. Um caquinho de vidro a enfeitava. Retirei com delicadeza.

 

Mas não contamos a eles.

 


Agosto 11 2009

 

Estou sempre lembrando os poetas.

 

Nunca estive tão à mercê deles como atualmente.

 

Hoje foi a vez dele - invadiu o meu pensamento. De repente veio assim. Uma poesia específica. Procede. Era sobre o dia dos anos dele. Como ele olhava para os anos passados. E como comemorava o ano presente.

 

Desconheço enredo mais belo.

 

Assim são os poetas. Não deixam que nada escape. E, a cada versinho, cada um se enlaça dentro da sua pessoal desorganização. Sim. Porque diante das organizações – a poesia escapa. Fica-se com as estatísticas. Ou com as listas. Ou até com as falsas verdades. Mas a poesia só denuncia a desorganização. Aprendi há tempo. Sem atalho e sem todo.

 

Brinca-se com as palavras. Como na arte da dobradura. Começa-se com um papelzinho sem marcas. Dobra-se daqui. Vira-se dali. E a figura que surge parece até espontânea. Mas não é. Palavra é escolhida a dedo. Mesmo que seja vinda de um ato falho. Ou de um ato perdido. Até de um ato esquecido.

 

Como as dobraduras – as palavras nos levam ao Lugar que manufaturamos. Disso ninguém escapa. Pode negar. Recusar. Mas não tem saída.

 

E lá estávamos nós. Há quatro dias. Diante de tudo que representava ato e fato. E até o contrário cabia. Festejo é sempre assim. Um não mais acabar de vice-versa.

 

Desta vez – mais uma refeição antes da partida. Reiteramos votos e afirmamos dúvidas eternas. Lógico. Não existe continuidade se não há as cultivadas dúvidas.

 

A minha avó estava certa. As certezas não constroem as grandes amizades, menina, as certezas não constroem as grandes amizades.

 

Foi pensando nisso que nos despedimos. Sob o som do zíper das malas sendo fechadas. Do barulhinho das rodinhas pelo piso. Do girar delicado da chave na porta.

 

Elas se foram. No final da tarde. Ou no final do dia. Não importa. Despedida não tem horário. Simplesmente é.

 

Saíram levando novos risos e novos códigos. Um pretenso caderninho com novas páginas escritas. Em meio às páginas amareladas dos velhos e recontados acontecimentos. Cada uma com seu olhar para o que viu. Para o que negou. Para o que descobriu. Até para o que esqueceu.

 

Quando saíram – sentei.

 

Olhei a mesa com a toalha branca ainda sobre ela. Caminhei com os dedos pelos bordadinhos. Uma manchinha vermelha me fez rir. Lembrei dela cobrindo com o guardanapo a pequena marca do desatento gestual. O cafezinho esvaziado em sua proposta marcava com fina textura a xícara deixada num cantinho da mesinha. As cadeiras desalinhadas denunciavam o senta-levanta. Nas pias alguns pratos se amontoavam certos da função bem aplaudida. Um papel colorido e brilhante num cantinho do sofá demonstrava os motivos do encontro. As flores coloridas erguiam-se alheias se idas ou vindas. Na bancada as fotos mexidas marcavam a dança da memória.

 

Um ventinho entrou por uma fresta da porta da varanda e percorreu o espaço como posseiro.

 

Em meio a esse amontoado de lembranças - o telefone tocou. Até dei um pulo da cadeira. A realidade se apresenta de todas as formas. Foi o que pensei. Procedia.

 

Do lado de lá alguém solicitava informações precisas. Práticas. Pragmáticas. Respondi o demandado. Sorri. Parecia que me acordavam. Que os acontecimentos giraram em torno de um cochilo. Uma piscadinha mais longa.  

 

A rotina re-estabelecia as suas metas. Não sei se com tranqüilidade – como pensei num primeiro momento. Mas por certo com determinação. Até acelerei os movimentos. E já fui olhando para o relógio. Só não olhei logo porque esqueci onde o havia colocado. Mania antiga. É sair da rotina – e o coitado do relógio vai para um canto qualquer. Mas – resgatado – voltou a dar as ordens.

 

E me pus de imediato a obedecê-las. Agora era só recolocar o que estava deslocado. Arquivar novos dados na memória. Voltar a prever o dia seguinte.

 

Guardar objetos em seu devido Lugar. Fazer o mesmo comigo. Retomar o meu tal devido Lugar.

 

Bem o contrário do que foi vivido. Pensei enquanto colocava os registros em ordem. Enquanto alinhava as fotos no balcão. Ou arquivava a poesia. Ou enrolava e dispensava o papelzinho colorido do presente. E o tempo se fez total. Sem fragmentações. Quase sem antes e depois.

 

Estávamos com os dias ao nosso redor. Agora era continuar ao redor dos nossos dias.

 

Tudo co-memorado na forma de-vida. Ri. Feliz.

 


Agosto 09 2009

 

A semana girara em torno da expectativa.

 

Até sorriu. Quando começou a entender. A expectativa em si – letra por letra – estava já sendo vivida. Já acontecia.  A existência do ato já era fato. É sempre assim. O difícil é enxergar. Vai lá saber por que. Quando uma programação se estabelece – já começa a ser vivida desde o primeiro passo.

 

E a rotina passa a ter outro colorido. Algo por aí.

 

Mas estava muito agitada para ser parcimoniosa. Com as idéias. Os pensamentos vinham desordenados. Não havia fila nem senha. Chegavam de qualquer jeito.

 

Sempre fora assim. Quando chegava esta época – ficava mais feliz. Muito mais feliz.

 

Quando criança – era o mês das reclamações.

 

As notas caiam. O boletim ia para o Departamento das Recuperações. O comportamento ficava um horror diante dos critérios aprovados. E lá se ia para o Departamento das Complicações. As queixas se sucediam.

 

Parecia que professores e coordenadores só sabiam o nome dela. Era o nome mais repetido do mês. Não se importava. Como se não lhe dissesse respeito. Muito menos autoria. Falava mais do que o costumeiro. Ria muito mais que já se conhecia.

 

Quando o mês acabava – voltava para o seu estado habitual.

 

Não que fosse de todo bem disciplinado – porém menos acelerado.

 

O tempo passou. Não tinha mais problemas de boletim. Nem de comportamento. Nem de coordenadores. Não frequentava mais os Departamentos. Mas continuava em seu festejo particular.

 

E desta vez não foi diferente.

 

Quando elas chegaram – todos já sabiam. Estava inaugurada a semana. Os festejos. As lembranças. As saudades. Os acertos. As surpresas. As noticias de todos os lados. As fotos antigas. O riso dela pelas fotos antigas. As escavações na memória. Estavam iniciadas as comemorações.

 

A mesa arrumada. A toalha branca. As flores. As cores da comida. A música bem escolhida. Elas vieram de lá. Saíram da rotina. Re-agendaram as tarefas. Para participar.

 

Eles passaram a semana tramando surpresas. Monitorando a organização. Para que nada faltasse. Para que tudo agradasse. A ela.    

 

Todos juntos. O espaço acolhia a todos. A casa parecia mais clara. Com mais luz.

 

Não faltavam abraços. Beijos. Piadinhas. As fotos assustadas. Agora não. Nem sorri. Apaga essa. Não fiquei bem. Essa - adorei. Me envia. Agora pode. Mais um pouco. Você fica aqui. O preferidinho é ele. Não. É ela. Ela faz assim. Eu que me desdobro. Sim. Ela sempre foi muito elegante. Não acredito. Mexendo com terra. Adora o sitio. Não o chalé. Certo. Cada um nomeia como quer. Mas ela mexendo com terra. Surpreendente. Quem diria. Então tudo bem. Luvas de borracha com grife. Agora a reconheço.

 

Falou sim. Falou que não estava bonita naquela festa. Eu escuto bem. Não faz mal. Eu me vingo. Ele também faz nesta época. Teremos que acertar tudo de novo. Sim. Diante do mar. Ia ser bom. Vamos organizar. Como assim eu quem decide. Sou submissa.

 

Estão rindo do que mesmo. Não entendi. De novo. Ela não esquece a tal Cidade Luz. Não tem assunto que não possa ser citada. Até unha encravada.

 

Sim. Outro brinde. Também achei. Delicioso. Que surpresa. É ela sim. Está ligando de lá. E no momento exato. Dos nossos brindes de aquém mar.

 

Que alegria. Você ligou para estar presente. Nem precisava. Você está presente esteja onde estiver. Além mar não é distância. É só localização. Sim. Todos também estamos sentindo sua falta. Que bom que ligou. Elas estão aqui sim. Haja ciúmes. Depois dizem que ciúme é bobagem. Sei.

 

Diante desse coral perfeito – ela parou. Sentou. Olhou para todos. Se sentiu a privilegiada. Repetiu uma frase costumeira. Bem baixinho. Alguém lá de Cima me adora. E balançou a cabeça. Grata. O prazer de estarem todos juntos era de uma obviedade que até emocionava.

 

E o dia exato ainda nem tinha chegado. E já tinha chegado. Lá se veio – de novo - a questão do tempo. Redundância perfeita. Mas ele proibiu. Não se pode dizer a palavra chave. Esta só no dia certo. Dá azar. E todos obedeceram a ele. Como sempre. Um avisou de lá. A Lei chegou. E todos riram. Obedientes. Lógico.

 

Agradeceu. A todos. A um por um. A elas que viajaram. A eles que se organizaram. E a ela - que mudou a rotina para contribuir com sua acertada arrumação.

 

Deu um beijo nele.

 

Concluiu. É o afeto que enlaça a alegria. E qualifica o Tempo certo.

 

O mais é calendário.

 


Agosto 06 2009

 

Eis a questão inicial. O tempo passa muito rápido. Não dava para acreditar.

 

Lembrei o poetinha favorito. De um versinho breve. Tão breve quanto a Vida. Algo sobre quem é aquele envelhecido ali que me olha. No espelho.

 

Pode-se até amor-daçar o desperta-dor. Pode-se esconder o objeto. Só o objeto. Por que o tempo fica ali. Servindo-se de si mesmo. E servindo-se do outro.

 

Impossível não pensar.

 

Como dizia a minha avó.  Sempre parece que foi ontem, menina, sempre parece que foi ontem.

 

Foi assim que me senti – de repente. A  serviço do tempo. Como uma habitante do seu cárcere privado. 

 

Mas os planejamentos já se iniciavam. Dava para ler nas entrelinhas das comunicações. Dos olhares. Das frases ditas com rapidez. Estilo ao bom entendedor. Cada ano vem com uma novidade. Uma orgia de criatividades.

Cada um expondo seus afetos de forma especial.

 

Lembro de uma vez. Quando cheguei de volta em casa. Ele havia iluminado a sala toda com pequeninas velas. Muitas. Nem dava para saber quantas.

 

Pareciam estrelinhas contratadas. Ali. Em cada lado que virasse – um pontinho de luz delicada. Da cozinha rescendia um odor quase onírico. A música fora escolhida com total adequação – havia sido a primeira música.

Lembro quando entrei na sala. E vi os brilhos no escuro. A música. O cheiro.

 

Passei um tempo em posição de surpresa. De pé. As duas mãos no rosto. Um riso assanhadinho entre as mãos. A mais pura expressão de prazer.

 

Lembro da pergunta dele. Não vai entrar. Na mesinha muitos pacotinhos enrolados com laços e papeis brilhantes. O vinho no balde. A mesa posta. O olhar dele. O riso. Uma festa. Entrei. Sentei. O difícil foi tirar as duas mãos do rosto. O riso foi fácil. Ficou para sempre.

 

Até hoje – quando lembro sinto o cheiro e vejo as cores.

 

Uma outra vez caiu num domingo.

 

Ele levantou antes. Desceu. Da cama escutei uns barulhinhos. Perguntei se estava tudo bem. Sim.

 

De repente muitos barulhinhos. E pés pela escada acima. Estavam todos lá. Ela também estava do lado de cá do mar. E ali. Dentro de casa. Todos. Risos e risos.

 

Me convidaram a descer. Estava lá uma festa. De flores. Um pacote enorme enrolado de branco com fita vermelha - descansava seu peso no sofá.

 

A mesa. A mesa estava linda. Toda arrumada. Com tudo que agradaria aos deuses gregos. E eles todos felizes. Ela só ria. E apontava a sua parte na composição. Para destacar o – lhe conheço bem.

 

Tantos anos que ela não participava deste festejo. A comemoração passou a ser múltipla. Não faltaram motivos. Desta vez a música era mais comunitária. Regida apenas por risos e vozinhas.

 

Naquele dia deu para entender o que falam sobre a magia do afeto.

 

Agora escuto os burburinhos. Vejo olhares enviezados. Desta vez ela não virá. O além mar está mais além. Mas hoje cedo já se fez presente.

 

Informou da celebração. Antecipadamente. Como contagem regressiva. Sempre atenta. E delicada. Já acordei rindo.

 

Foi aí que veio o tal de repente. Aliás veio duas vezes.  Sempre explico a ele porque gosto de ópera. Acho que ele já entendeu. Se não entendeu vai entender. Quando ler.

 

De repente o Tempo passa. E passa mesmo. Ciente da sua função. Com absoluto desprezo por reclamações. Vai lá fazendo um percurso que nem sequer é planejado. Lida com tudo com total despropósito. Este é o Tempo.

 

Mas de repente também o Tempo traz as respostas. Os retornos. Os possíveis merecimentos.

 

Entre esses dois de repente – discordei de mim mesma. Depois me convenci de mim mesma. Para depois entrar em estado de dialética.  

 

Diferente do meu poetinha querido, me reconheci.  E,feliz, dei um beijinho no espelho.

 

Não fiquei tão-somente a serviço do Tempo.

Também o fiz existir a meu serviço.

 


Agosto 04 2009

 

Pode parecer redundante. E é. Isso não se discute. Nem se tenta esconder. A emoção superou a emoção.

 

Se ele escutasse perguntaria. O que isso significa. Esta é uma pergunta que ele sempre faz. A pergunta pelo significado exato.

 

Não há frase escutada, nem texto lido - que a pergunta não venha acoplada. É tão justa que nem hífen interfere. Ou nem hífen tem autorização para cortar a questão. Junto com a postulação - algumas vezes até esboça um riso. Não sei se da tal pergunta. Ou da idéia alheia. Isso é sempre difícil de qualificar.

 

Cada um pensa o que decide. Mas revela apenas o que não censura. A si próprio. Ninguém gosta de se colocar em posição de resposta. Só em posição de pergunta. Uma boa escolha. Sábia. No mínimo - também - cautelosa.

 

Mas fiquei ali. Lendo e relendo a mensagem. Com a emoção superando a emoção.

 

Então tudo dera certo. Mesmo de tão longe. Mesmo sem participação materializada. Sem conhecimentos das faces. Ou das interfaces. Foi só indicar a vontade. Seguir a sequência. Obedecer aos comandos. E deixar lá.

 

E agora o retorno. Assim. Mais de repente que de repente. Ela avisava. Consegui. Chegaram. Estão lindos. A impressão é ótima. Até a embalagem de envio é muito bonita. E adequada.

 

Nem sei quantas vezes li e reli. Esse recadinho.

 

Já fui logo acrescentando. Na imaginação. Será que ela leu comendo bolo de nozes. Será que fez um cafezinho. Será que estava sentada na mesa da cozinha. Não faltaram - será.

 

E o mais engraçado é que nem respostas. As respostas - as tinha. Podia vê-la recebendo. Abrindo. Sorrindo. Podia sentir o entusiasmo. O acolhimento. A pontinha de orgulho por participar. Podia até ver a pressa em abrir logo. Mas sem perder a delicadeza. O cuidado. Para não rasgar o papel. Podia descolar ou desamarrar. Mas nunca rasgar.

 

Lembrei do mestre austríaco. Ele que comentava sobre o papel. O mais importante nem sempre é o que está escrito. E sim saber que a pessoa está passando as mãos no que foi escrito. Isso é belo. Alguém que nos conhece – toca nas frases que inventamos. Nunca o entendi tanto quanto hoje. Tantos anos de estudo. E um aviso decodifica toda uma teoria. Maravilha.

 

Mas foi assim. Ela fez o pedido. O pedido foi atendido. Em cima do que foi escrito. Tudo muito rápido.

 

Fiquei pensando no tempo. Ela saiu daqui. E foi para lá. Além mar. Tempo e espaço deslocados. Ou recolocados. Nunca se sabe.

 

Lembrei da minha avó. Ela falava sobre isso com uma seriedade não muito habitual. Cada vez que a via falar com aquela expressão - eu sentava. Como se o ato de sentar me fizesse mais atenta. Ou formalizasse com mais rigor. O que ela – meio à toa – falava.

 

Tempo e espaço não são relógio nem mapa, menina, tempo e espaço não são relógio nem mapa.  

 

Procede. Agora estava o conceito demonstrado. Ela – além mar. Eu – muito aquém do mar dela. Daqui escrevi. De lá publicaram. Ela escrevia o bilhete de recebimento. Eu lia o aviso de leitura. Dá até para ter confusão mental. Ri.

 

Pensei. Preciso comemorar. Preciso contar. Para quem incentivou. Para o mundo. Para mim mesma.

 

Foi o que fiz. Nesta ordem. O mundo estava ocupado. Com seu ritmo. Seus acertos. Sua rotina. Muito justo. Compreendi.

 

E fiquei com o mim mesma. Desta vez imitei o mestre francês. Fui para o espelho. Olhei e comemorei. Numa solidariedade afetuosa.

 

No final do dia - outro recadinho dela. Havia se descoberto lá dentro. Na dedicatória. Nos relatos. E informou. Ao receber - sentara na cozinha. Na bandejinha diante dela colocou um bolinho. Partiu duas fatias. Leu tomando um cafezinho com uma gotinha de conhaque. Sorrindo para as páginas.

 

Conferiu o tempo. A distância. Acreditou na simulação. Confiou na execução.

 

Entre além e aquém – esqueceu a Semântica. A Sociologia. Até a Filosofia. A fantasia apagou os mares. Ai esqueceu - por fim - a Geografia.

 

Assim me informou. Assim li. Assim entendi. E assim uma publicação - se fez ao contrário. Exatamente como deve ser.

 

À noite ele me trouxe flores. Fiquei - Muito Feliz. Com letra maiúscula.

 

Preciso marcar a data de hoje. Fui dormir - sorrindo - pensando nisso.

 


Agosto 01 2009

 

Quando li o recado demorei a acreditar.

 

Acendi a luz. Abri a porta da varanda. Um pouco de iluminação também externa podia ajudar. A clarear. Até a esclarecer. Limpei os óculos. Ajeitei de novo a cadeira. Até reiniciei o portador. Uma brisa entrou suave.

 

Depois de tantos anos. Um recadinho estilo - procura-se. Era eu a procurada. Era ela quem procurava.

 

Cada vez que eu pensava isso – queria repetir o ritual de configuração. Lá se ia de novo limpar os óculos. Até ria.

 

Certo. Vamos ver do que se trata.

 

Desde que sai de lá nunca mais tive notícias. Ou melhor. Tive algumas. Terceirizadas. Estava se solidarizando com quem escolhera. Como uma ajudante voluntária e fraterna. Não importava. Se já vali. Se já valeu. Devia saber o que fazia. E aprovei. Sem interferências. Muito menos queixumes. Não tinha tempo.

 

Entre as caixas da mudança e as idas a hospitais para coração descompassado – só me restava o tempo exato para ter calma.

 

Quando as caixas saíram vazias e o coração compassou - no final da tarde tinha o café.

 

Ela vinha com bolinhos de nozes e sotaques. Não dava tempo para queixumes. O riso começou a ocupar o espaço com franca e exposta decisão.

 

O tempo passou. Os dias se somaram e foram completando a década.

 

Mas lá estava o recadinho. Procura-se. Uma década depois. Parecia que os dias estavam se dividindo. Para explicar um tempo que passou. Como se folheasse um calendário antigo. De trás para frente. Ou vai ver era mesmo de frente para trás.

 

Como dizia a minha avó. Não se comprometa com o calendário, menina, não se comprometa com o calendário.

 

Tinha razão. Fatos e atos podem ser partilhados com qualquer um de nós. Mas as datas de um calendário são sempre alheias - também a qualquer um de nós. Foi uma sensação inicial. Assim. Confusa. Ambígua. Surpresa. Tudo ao mesmo tempo. Ao ler o recadinho.

 

Decidi responder. Achou. Estou aqui. Resolvi complementar a informação com dados atualizados.

 

Li e reli umas trinta vezes. Aumentava os relatos. Cortava. Fiquei um tempo entre o prolixo e o sucinto. Entre um imposto e um exposto. Optei por este Lugar - entre um e outro. Mas me identifiquei.

 

Até me assustei. Quando a gente se identifica – se qualifica. Ou o contrário. Diante de si próprio. Foi o que descobri. E lá me vi de novo - às voltas com o calendário.

 

Escrever avisando aqui estou – fez novamente passar as páginas dele. Desta vez de todo lado. De frente para trás. De trás para frente. Deu até vontade de encontrar um ainda não impresso. Um da frente para frente.

 

Mas enfim. Depois de ler e reler. Informei. Confirmei. Achou.

 

Foi como se – eu - tivesse me achado. Depois de uma década.

 

As pessoas do passado têm esta capacidade. Ou funcionalidade. Quando voltam – é como se uma materialização se procedesse. A formalidade da informação - como um balcão de cartório. Vai-se relatando os dados na suposição que o outro – do outro lado do balcão – os esteja registrando com a valorização procedente.

 

Só depois descobrimos que os tais dados só são importantes para nós mesmos. Eles é que nos localizam. O outro apenas os transcreve. E nos devolve. E ficamos com os nossos dados em volta de nós – vida a fora.

 

Não era um balcão. Não tinha funcionário. Não se reconhecia a firma. Protocolarmente falando.

 

Mas tinha uma explicação. Uma descrição. Uma até possível entonação. Como uma anamnese de saúde. De sobrevivência. Com umas gotinhas de orgulho. Uma dose quase medicamentosa de vaidade. E uma overdose de alegria egocentrada. Pelas escolhas. Pelas conquistas. Pelas parcerias estabelecidas. Até pelas perdas. As perdas estão sempre presentes. Mas o motivo é nobre. Elas expõem as escolhas. Procede.

 

Sentada diante do texto – li tudo que escrevi. Desta vez fugi ao habitual. Não imaginei o que ela pensaria ao ler. Fiquei imaginando o que eu pensaria disso – há uma década.

 

Os dados foram enviados. Com os anos colados a eles.

 

O calendário - discreto - observava silencioso sobre a mesa.

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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