Blog de Lêda Rezende

Julho 05 2009

 

Querido:

        Não esqueça  de escovar os dentes deles.
  Falar para a médica sobre a vacinação, a carteirinha está na sacola
  Fale sobre as manchinhas atrás das orelhas deles

  Fale sobre a alimentação

  Pergunte se ela vai passar alguma vitamina

  Fale do dedo que a Marina não tira da boca e já está até machucado – (o que fazer?)

  Pergunte se já está na hora de sair das fraldas (o que podemos fazer?)

  Leva os exames – já coloquei na sacolinha, não achei o comprovante para pegar os outros. Acho que você levou para a Empresa e não trouxe. Leva as carteirinhas que dá para pegar.

  Lave o cabelo do Paulinho.

  O cabelo da Marina é só prender. Fala pra minha mãe fazer dois rabinhos que ela sabe.

  Dá um banho bem dado nos dois, tá?

  Ah! Traz o papelzinho que marca a altura e o peso deles para eu marcar depois na carteirinha...

  É isso. Estou indo sem querer, mas fazer o que... logo estou aí

  Um beijo

 

 

Gêmeos. Foi um susto a noticia. Eles mal tinham saído do juramento na saúde e na doença e lá estavam. Na alegria e na certeza. Sim. Eram dois. E um casal.

 

Entenderam a Vida. A arte da Vida. E a razão de viver. Entenderam tudo isso ao mesmo tempo.

 

A consulta era de rotina. Estava atrasada a fisiologia. Mas devia ser o cansaço. Viajaram logo depois da cerimônia. Na volta foram cuidar de organizar a casa nova. E isso incluía documentos e volta à rotina do trabalho. Nem se preocupou. Tinha engordado um pouco. Devia ter sido pela ansiedade. Da festa. Da viagem. De toda a mudança de vida. Da volta ao trabalho. Dos horários mudados. Estava explicado.

 

Quando a certeza é garantida - é sempre bom duvidar. A experiência é a arte de carregar – com segurança - muitas dúvidas. Assim foi a sabedoria do médico. Achou segurança demais.  Examinou. Solicitou um complemento. Era rápido. Eles, tranqüilos. Conversando e rindo.  

 

Veio o resultado. Foi cuidadoso. Perguntou se já tinham a vida arrumada.

Escutou que sim. Se estavam empregados. Escutou que sim. Se pensavam em ter filhos. Escutou um sim – mais tarde. Entendi.

 

O que vocês acham de sete meses. Acham muito tarde. Muito cedo.

 

Os que riam – silenciaram. O que silenciou – riu. Gêmeos.

 

Saíram do médico e voltaram para casa. Já da porta - no abrir da porta - a casa já não era a mesma que tinham deixado. De repente parecia tão pequena.

 

Horas antes sobrava espaço.

 

Foram a caminho do hospital combinando a decoração. Pensaram em comprar mais uma poltroninha. Quem sabe incorporar um dos quartos à sala. Seria o local da música. Mais um sofá. No terracinho – uma churrasqueira. Teriam tempo. Com calma a casa ficaria como queriam.

 

Na volta já era outra casa. Não a que eles fecharam a porta. E deram as costas. Agora abriam a porta. Olhavam de frente. Tão pequena. Não cabia mais nada. Nem poltroninha. Nem churrasqueira. Naquele minúsculo terraço. Nada mais de som. Muito menos de quarto incorporado.

 

Incorporada estava ela. Duplamente incorporada.  

 

De repente se deu conta. Nem soube dizer por que. Mas entendeu.O mundo das listas.

 

Havia este mundo paralelo. A lista do chá de cozinha. Depois a lista do casamento. Passando por uma lista de convidados. Até a empresa de turismo cooperara - uma lista de hotéis. Teve a do chá de bebê. Bebês. Duas listas. Com direito a cor. A lista das compras. Então assim era o mundo. Só não sabia como não tinha percebido. Que listas não finalizam. Nunca.

 

Agora estava ele ali. Mais uma vez – diante de uma lista.

 

Seguiu – rigorosamente. Com toda a atenção que uma lista merece.

 

Estava com os “listados” no colo. Lindos. Os rabinhos dela maravilhosos. Cheirosos após um banho bem dado. Dentinhos limpíssimos. Feliz. Felizes.

 

Na saída pegou o papelzinho com o peso e a altura para colocar - na lista de acompanhamento deles.

 

Riu. Se sentiu integrado ao mundo.

 

 


Julho 03 2009


 

Nasci de frente pro mar
sigo as marés
altos baixos
perigo risco
barulho viração
eterno movimento
sem esperar
procuro alcançar
como as ondas
a areia
construo destruo
altero renovo
anuncio denuncio

exponho.


Quem sabe
tivesse eu nascido
de frente pro lago
seria calma serena
silenciosa
a esperar alguém afoito
uma pedrinha jogar
para me mover
em círculos lentos
até suavemente sumirem
e voltar a ser parada
cercada imóvel
plana
espelho
só refletir o que está fora
esconder o que está dentro.

 

 


Julho 03 2009

Assim as cenas se fizeram. E se desfizeram.No meio da tarde. De um dia calmo. Quente. Rotineiramente útil. Formalmente inútil. Subserviente.

 

Assim pensaram.

 

Por um momento a escuta.

 

Ela aparentava ter dez anos de idade. Os demais entre seis a nove anos. Deveriam ser ao todo nove. Ela foi avisando. Vai ter que calar. Obedecer. Não tem ninguém aqui para lhe defender.

 

Ele parecia ter menos de oito anos de idade. A frase não foi pior do que o olhar dele. Solitário. Assustado. Mas capturador. Dividiam uma certa quantia. Saldo de pára-brisas e flanelas.

 

Quando o nível emocional sobe – o racional vem em auxílio. Só o contrário é que nunca acontece. Esta é uma das poucas certezas que se acumula com o tempo. Racional em excesso produz excesso de racional.

 

Parecia uma pessoa - dois olhares. O mesmo olhar assustado se transformou. Rápido. Olhou sério. Frio. Para o outro que estava ao lado. E foi completando. Se cuida você também. Quando ela sair - eu que vou comandar. E a voz era rouca. Muito rouca.

 

E assim os olhares continuavam. Trocando de assustado em assustador. Como um efeito progressivo. Ou uma contaminação progressiva.

 

No momento seguinte a correria.

 

A chuva veio súbita. Forte. Impetuosa. Sumiram os olhares. Os comandos. A voz rouca. As idades se dispersaram.

 

O temporal veio como um deus feroz. Arrancou proteção individual. Mostrou o avesso do esperado. Não havia cobertura eficaz.  Nem coletiva. Nem social. As águas tomaram conta das calçadas. Das ruas. Das casas. Até dos elevadores. Invadiu onde pode. Alcançou onde não se acreditava. As luzes apagaram. A sinalização se foi.

 

No inicio não havia movimentos.  Além da chuva. Do vento.  Parecia mágica. Pontos de venda de emergência surgiram. Muitos. E muitos tentando comprar uma garantia. Bolsas e carteiras expondo com rapidez a possibilidade da solução. Como o teatro do Absurdo.

 

Logo depois a dança.

 

Objetos voando. As mãos. Muitas mãos. Como um ballet de mãos para o alto. Mais para o alto. Uns erguiam os braços. Outros mais afoitos pulavam. Tentavam trazer de volta o que virava para o lado errado. Ou que partia para um destino ignorado.

 

Uma dança quase filosófica – não fosse a explícita realidade dos fatos.

 

A chuva - impedia a visão direcionada.

O vento – impunha as desordens com frivolidade.

Os raios - pichavam impunemente o céu.

As mãos - dançavam soltas sem regência.

Os objetos - voavam experimentando a liberdade de expressão.  

As sirenes - cumpriam a sua função de cuidado.

As luzes vermelhas - tentavam cortar caminhos sem solução. 

As portas - fechavam com rapidez.

 

O espaço sumiu. Desapareceu por um tempo. Submergiu. Não havia mais limites. Nem degraus. Aqui eu piso. Ali você passa. Era tudo uma falta só. Não sei onde piso. Você não sabe onde passa.

 

Os corpos se fizeram marcados. Pela água. Pela roupa deslocada. Sem pudor. Sem escolha.

 

Por fim um retorno ao primitivo.

 

Sob uma marquise muitos em busca do abrigo. Empurrando. Disputando. Trocando olhares frios.

 

Já que ali não tinha quem defendesse. Só restava impor. Foi o que pareceu.

 

Cada um ao seu modo. Salvaguardando o que mais interessava. Naquele momento a própria segurança.

 

Mais profundamente – a própria existência. Igual à partilha. Foi o que pareceu.

 

 


Julho 01 2009

Lembrou daquele texto. Ele falava mais ou menos assim - a pena parou.

 

Como se no meio do texto a pena tivesse parado. Ali. Estancada. Sem nada a dizer. Muito menos a declarar. Fez-se paralisia. Congelou. Atos. Não sentimentos.

 

Os sentimentos estavam tão abalados que não se davam conta. Não podiam continuar. Atropelavam-se. E ao mesmo tempo paralisavam. Sensação estranha.

 

Parecia que os fragmentos do tempo se afastavam. Deixando pedacinhos soltos. Como mosaicos abandonados – decompondo sua forma. O que era para ser continuação – virou passado. E como passado foi reportado.

 

Tudo numa mesma declarada inversão. Onde tinha que ter não tinha. Onde tinha que estar – já não mais existia.

 

De repente tudo ficara sem cor. Sem lastro. O alcance tinha sido maior que pudera imaginar.

 

A notícia viera junto com uma lágrima. Ficou ali escutando. Dizem os entendidos - em situações limites - falta chão. Parece uma metáfora sem importância. Ou uma analogia. Ou apenas uma comparação banalizada. Mas se é verdadeira não se sabe. Porque ali parecia o contrário. Sobrava chão. Muito chão. E não se sabia que lugar pisar. O que faltava era ar.

 

Se sentiu sufocada. Presa em algum ponto do discurso dela. Ficou assim. Suspensa na palavra. Presa na angústia. Paralisada na dor.

 

E ela em frente. Contando. Contendo. Relatando. Expondo a sua dor. A sua falta. O seu desamparo. Mostrando no corpo o resto inútil que lhe ficara.

 

Lembrou o Francês. Se uma perda é muito grande – a perda seguinte é das palavras. Procede. Teve abraço. Teve choro. Mas não teve palavra. Pelo menos a palavra certa. Deve existir uma só que seja. Que se diga. E que acalme. Proteja. Explique. Console.

 

Mas isso já é pedir demais a uma palavra. Ela vem em auxílio - em auxílio. Nunca em função. Parece que a palavra não tem função. Tem regra. Tem sinônimo. Tem antônimo. Tem até acento. Mas não tem função. Descobriu isso na hora. Na hora de verbalizar. Por que verbalizou silêncio.

 

Fez um esforço enorme. Para mover os lábios. Começou pelas letras. Tentou formar a palavra. Construir uma frase. Assim, desta forma. Como quem engatinha. Pensando em andar. E perdida naquele excesso de chão.

 

Não conseguiu falar. Ou melhor, conseguiu falar. Não conseguiu dizer.

 

Dizer da enormidade da dor compartilhada. Da compreensão da dor individualizada. Da certeza de uma dor materializada. Que até – de tão forte - podia ser tocada. E que não faltava chão. Sobrava espaço. Tinha agora ali, diante delas - um lugar vazio.

 

Foi tudo isso que quis dizer. Letra por letra. Mas só disse silêncio.

 

E paralisou diante da dor. Da ausência.

 

Quando ela saiu não sabia o que fazer. Com o dia. E fez o que tentou fazer com a palavra. Fez minuto a minuto. Depois as meias horas. Para depois completar o ciclo das horas. Seguiu então o compasso das horas inteiras. Fez o dia - apenas - cronológico.

 

E levou consigo os dias que não virão. Junto com este dia encerrado.

 

Haverá sempre um chão sobrando. Uma presença faltando. Haverá a ligação. Pelo elo faltante.

 

Uma ligação pela ausência. Fazendo assim bascular a impossível presença. Mas ainda assim - presença. Ou ainda assim – ausência.

 

Quando uma ordem é invertida – toda uma nova equação tem que ser estabelecida. E todo um tempo novo precisa ser – existencialmente - acreditado.

 

Ficou - em meio a este passar de dia cronológico - pensando nas idéias do filósofo alemão. Ele garantia que só a dor é positiva. Devia saber o que falava. 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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