Estava num período de muitos ciúmes. Não sabia a razão de forma objetiva. Mas sentia a sensação de forma decisiva. Como deve mesmo ser o ciúme. Decisivo e arrogante.
Ele – o objeto do ciúme – nada falava. Não mudara os horários. Não se atrasava no fim do dia. Não trocara detalhes. Cuidava de si como sempre o fizera.
E ela ali. Sempre com o olhar esgotado. De tanta procura. Como se seguisse uma ordem. Vinda de dentro. Muito mais do que de fora.
Nas noites da semana ele ia para o computador. Ela ficava assistindo. Não havia termo melhor. Assistindo. O tempo passar. Ele no computador. Ela esperando. Estava sempre ocupado. De vez em quando trocavam um comentário. Ele meio desconcentrado. Do que ela falava. Ela meio desconcentrada. Do que ele respondia.
Sempre tinha uma tarefa. Desta vez ele buscava músicas. Daquele compositor que falaram num jantar. O amigo queria muito. Mas não encontrava. Escutou o pedido. Saiu em busca. Dos tempos idos. Para o amigo.
Concluiu. Para um cantor antigo nada mais adequado que uma pesquisa moderna.
Por muitas noites ficaram assim. Ele – quase ausente - buscava o passado. Ela – quase presente - buscava o futuro.
Educação. Bom senso. Concentrava-se nestas idéias. Para incorporá-las.
Mas não conseguia. Lembrava a avó de uma amiga. Ela sempre dizia. A palavra não obedece fácil menina, a palavra não obedece fácil.
Tinha um estilo pacífico. Assim se definia. Mais escutava que falava. Se é que este é um estilo pacífico. Mas enfim. Era como se entendia. Até elogiava. A persistência dele. A delicadeza em querer agradar. A atenção em satisfazer o pedido. Do amigo.
Numa noite ele avisou. Acabou. Assim. De repente. Ela sentada assistindo televisão. Ele no computador. Quando ele falou. Acabou. Pronto. Ela estava esquecida. Da tal tarefa sonora. Assustou. Achou que era com ela. Virou-se para ele.
Olhos para fora. Boca aberta. A respiração suspensa.
Ele desconsiderou o susto dela. Nem percebeu. Só disse. A coletânea. Consegui.
Ela riu. Muito.
Deu o presente ao amigo. Ele ficou feliz. Surpreso. Tão feliz quanto surpreso.
Contou depois que foi para casa. Escutou repetidas vezes. Dormiu até com as músicas tocando. Uma noite toda. Ficou grato. Muito grato. O cantor remetia à própria historia. Uma fase boa da vida. Uma parceria refinada. Música e boas lembranças. Quando uma se une à outra não há fio de tempo que separe.
Ela até mudara um pouco. Estava mais calma. Parecia que as tais palavras estavam mais obedientes. Parecia.
Uma tarde, no horário habitual, foi ao salão. O semanal da beleza. Tranqüila. Parecia.
Chegou uma mocinha. Linda. Cabelos de cachinhos. Leve. Suave. Risonha.
Parecia saída do banho. Uma gracinha de mocinha. Tudo seguindo uma ordem pacifica. Quando contou da noite musicada. A mocinha. Falou em bom som. Do mesmo cantor. Alguém comentou. Nem sabia que você conhecia. Não é da sua época. Não conhecia. Mas um amigo doce e carinhoso me apresentou. Deu de presente. Uma cópia. Ontem. No final da tarde. Falou isso com um sorrisinho. E com os cachinhos balançando. E o cheiro do banho.
Levantou-se da cadeira. De um pulo só. Recolheu as mãos.
A moça que coloria as unhas ficou vermelha. Achou que fizera algo errado. Ela ficou branca. Achou que descobrira algo errado.
Olhos para fora. Lábios para dentro. A respiração suspensa.
Chegou junto da mocinha dos cachinhos e pediu. O nome. Um nome. De quem lhe dera o mimo musical. A mocinha, assustada, respondeu.
Telefonaram para o marido. Avisaram. Ela desmaiara.