Enfim estava lá. E com eles. Amava aquela cidade. Até faziam piadinhas com ela. Se estivesse triste. Entregassem-lhe uma passagem para lá. Riria em segundos. Se estivesse concentrada. Bastaria alguém dizer as iniciais do nome da cidade. Ela logo se virava para escutar. E ela não negava. Sua relação com aquela cidade era realmente assim. Passional. Lúdica. E sempre acrescentava para horror dos menos avisados. E Ecológica. E se divertia com a surpresa nos olhares e gestos que este comentário causava.
A programação era intensa. Música. Ballet. Teatro. Levara as roupas adequadas. Sapatos adequados. Economizara no espaço. Da mala. Apenas um sapato de festa. Achou suficiente.
Deram voltas em lojas e caminhadas no Parque. Sacolas se amontoavam. Voltaram cedo para o hotel. O Hotel era muito elegante. Numa região privilegiada. E perto de tudo que gostava. Descansaram um pouco.
Foi se arrumar. Aquela noite era a noite da Música. Cuidou da maquillage. Perfume. Cabelos. Estava encerrada a tarefa com a imagem. Por último o sapato. O tal único de festa. Já o havia posto, desde que chegara da viagem, no armário.
Daí se iniciou um teatro particular. Cômico e trágico. E quase em iguais proporções.
O sapato sumira. Assim. Revira daqui. Procura dali. Abaixa-se aqui. Estica-se dali. Não estava mais lá. Ainda pensou em fazer piadinhas. Vai ver gosta mais de música do que eu. E já foi na frente.
Eles, solidários, telefonaram para a Segurança. Subiu um senhor alto. Forte. Com uma prancheta nas mãos. Caneta. Ar sério. Terno preto. Um fiozinho saia do ouvido e entrava no bolso. Do paletó. Explicaram o ocorrido.
O senhor alto escutou e depois começou com as perguntas. Eles todos se controlaram para não rir. Com as especulações que fazia o tal senhor. Riso e choro são expressões. Nada têm a ver com Idioma. Ele entenderia e poderia não ajudar. E o tempo passava. Não iam perder a Música por sapato nem risos.
A senhora viu alguém estranho no corredor hoje. Esta pergunta foi difícil. Difícil conter o riso. Apenas respondeu. Todos aqui são estranhos. Estamos num hotel. E ainda em outro país. Ele desconsiderou.
E partiu para a outra pergunta. A senhora recebeu algum pedido de resgate. Ela olhou bem para ele. Desta vez riu. Muito. Todos riram. Também desconsiderou o riso e repetiu a pergunta.
Ele insistiu. Quando a senhora o viu pela última vez. Continuou. Olhava para a prancheta. Não olhava para eles. Por sorte de todos.
Perguntou pelo valor de custo. Escutou três valores diferentes. E muitos risos encobrindo as falas.
Fez mais algumas perguntas dentro do mesmo padrão das anteriores. E sempre desconsiderando as respostas. Apenas seguia a sequência do que deveria estar escrito no manual. Não importava sobre o que se tratasse.
Informou – o segurança - que informaria à Seguradora do hotel que tinha sido informado do fato. Mandou que assinasse o documento que continhas as perguntas. Em três semanas tudo estaria resolvido.
Nada mais restava a fazer. Ele se foi. O segurança. Com prancheta. Caneta. E fio no ouvido.
Ocorrências como aquela são universais. Protocolo é protocolo. Foram estas as únicas conclusões filosóficas que conseguiram chegar. Não existem linhas dividindo a renda per capita. Não existe barreira de Idioma. É a máxima semelhança possível. Não deve ter sido à toa a punição pela construção daquela torre. Todos iguais abaixo do céu.
Olhou para o armário. Um sapato com Design Coitado devolveu o olhar. O tempo passava. Todos prontos. Ela ali.
Aceitou a oferta vinda do armário. Colocou o sapato. E saíram. Rindo. Muito.
Já no teatro ela notou o primeiro olhar. Para os pés. Custou a crer. Pensou que passaria despercebida. Qual nada. Não teve quem passasse e não olhasse. Já estava até se sentindo paranóica.
Mas não deu importância. Só se sentiu uma funcionária apressada do Exército da Salvação. E fez expressão de benevolência. Com até positivação gestual de cabeça. Para quem a olhasse dos pés ao rosto.
Aproveitaram a noite. E a música maravilhosa. Naquele cenário maravilhoso.
Ela só lamentou ter ido sem uma sineta. Na próxima.