Passara o dia no quarto. Com a porta fechada. Entregue aos seus pensamentos. Suas lembranças. Suas lágrimas. Decidiu aproveitar. Já que o pensar, ao menos, é livre. E deu liberdade total. Aos seus pensamentos. Não tinha ainda aprendido. Sobre a possibilidade dos riscos diante deste tipo de liberdade.
Mas acatou. Recordou. Até da feira. Lembrou dela de novo. Da amiga que viajara. Iam as duas. Todos os domingos pela manhã. Comer pastel de feira. E prometer toda semana. Que não iam mais comer. Porque fazia mal a saúde. Ainda bem que nunca conseguiram cumprir. A promessa. Porque hoje não o faziam mais. Uma além mar. Outra além serra.
Muitas vezes é bom avaliar, com muita cautela, as restrições. Ou a validade efetiva das restrições. Talvez melhor apenas prosseguir. Nunca se sabe quando pode começar a provação. Em meio à privação. Nem sempre é uma questão solitária de escolha. Pode acontecer à revelia. Por um saber nem sempre tão sabido. Nem sempre tão ocultado. Assim. Sem propósito. Sem fantasia.
Agora ela estava bem longe dos pasteis do domingo.
Tinha o carrinho. Comprara um carrinho de feira. Todos riram. E uma roupa especial para ir à feira do domingo. Adorava quando estava frio. O céu de inverno lindo. Azul turquesa. E o frio para contrastar. Que delicia.
Colocava a roupa especial de feira. Pegava o carrinho. Descia a ladeira da casa. Com ar feliz. Andar alegre. Pisar leve. Se sentindo dona de alguma coisa que não sabia definir. Devia ser da própria vida. Que enfeitava com o carrinho e a roupa. Encontravam-se na esquina da casa dela. Já desciam rindo e falando. Sob a orquestra das rodinhas do carrinho na calçada. Pura musicalidade.
Sempre gostara do frio. Não sabia explicar por que. Mas tinha uma sensação especial. Uma sensação de proteção. Gostava de sair de casa no frio. Talvez fosse pelas roupas. Pelos casacos. Pelas meias.
A roupa defende a pele. Devia ser isso. Na noite o peso das cobertas também defende. Da noite.
Tinha também a avenida. Adorava passear naquela avenida. Devia ser porque não enxergava o final. Como um horizonte perdido. Em meio ao asfalto. Aos carros. Muitas vezes inventava motivos. Só para ir até lá. Subia a tal ladeira. A mesma que descia para a feira. Até riu da lembrança. No final ficava mesmo era na ladeira. A subir e descer. Nunca se vê o fato no momento do fato. Achava isso incrível. Lembrava dos destinos. Mas esquecia do acesso. Até se surpreendeu com este mais novo pensamento.
Naquele momento percebeu. Triste. Tudo parecia tão longe. Começou a se arrepender. Da liberdade que dera aos pensamentos. Estava confusa. Indecisa.
Na tentativa de se atingir, pode-se acabar distante de si mesmos.
Foi presa a estes pensamentos soltos que, de repente, deu um pulo.
Cair quando começou a enxergar. Deve ser por isso que tanto caía. Vivia de pé engessado. Nem sabia mais quantas vezes torcera o pé. Brincava que era algum mau passo. Que tinha dado. Ou que daria. Depois concluiu que não. Na época até concordara. Depois não. Nunca conseguira dar um passo. Quanto mais um mau passo.
Para dar um mau passo é preciso muita sabedoria. Muito mais que para um bom passo. Isso já aprendera. E passo é uma questão muito mais estrutural. Que natural.
Mas vivia com o pé no gesso. Devia ser uma forma de dar passo nenhum. Garantia da desculpa. Da imobilidade. Até da impossibilidade. Sempre essa dificuldade. Por toda a vida.
Com mania de distância. Ou com desculpa de distância. Distância sempre está dentro de cada um. Nos olhos de cada um. Construída. Como um forte. Na distância - a perda do tempo.
Mas agora comemorava o pulo. O pulo. Pele aquecida. Olhos abertos. Não. Olhos esbugalhados. Até com arrepios. Não tinha visto. Não tinha enxergado. Ou tinha. Não sabia. Os olhos se acalmaram. A pele se acalmou. Riu calma. Baixinho. Sorriu melhor dizendo.
Na porta. Naquela porta. Bem em frente. Enfrente. Ao alcance.
Enxergou. Sorriu de novo. Compreendeu.
Diante dela - uma maçaneta. Uma maçaneta. Assim. Simples.
Levantou e saiu.