Blog de Lêda Rezende

Outubro 12 2009

 

Fiquei escutando o relato.

 

Ela falava de um acontecimento do passado. Da própria família. Ele escrevia. Muito. E lá um dia optou por publicar.

 

Lembrava da época. Não em relação ao tempo. Mas em relação às dificuldades. Estavam com dificuldade financeira. Era ainda muito pequena. Não tinha noção exata do significado. Mas tinha a sensação perfeita. De que estavam em período de contenção. A vida deles. A emoção. A rotina.

 

Lembrava da escola. De algumas contas que a mãe reclamava. De alguém um dia falando alto com ele. Parecia algum tipo de cobrança. Quis até defendê-lo. Mas sem saber bem o motivo - calou.

 

Entendia que estavam todos nervosos. E tristes. Procurava fazer sempre silêncio.  Quando estava em casa mal se mexia. Não fazia barulho. Era uma sequência quase militar. Poupava a si - e aos outros - de qualquer aborrecimento. Evitava confrontos. Desacertos. Demandas.

 

Aceitava o que vinha. Não pedia o que não tinha. Vai lá saber por que – mas a sua visão de criança a alertava. Como se a conduta exigida fosse essa. E acatava.

 

Riu quando assim falou. Como se tentasse entender a ela mesma. De frente para trás. Só adulta se deu conta. Riu de novo pela palavra dita. Achou pertinente e adequada. Ao relato. Continuara sempre assim. Diante de qualquer tensão. Silenciava. Movia-se o mínimo possível.

 

Houve um tempo que fez sessões de análise. Queria superar as barreiras erguidas. E lembrava que riu muito no dia que o analista lhe perguntou. Ou interpretou. Talvez para não acordar mais demônios. Riu porque não sabia. Ou porque sabia. Enfim.

 

Ele escreveu muito neste período. Muito. Como se pela mão correndo pelo papel – a angústia se fizesse menor. Chegava tarde da volta da rotina do trabalho. Mal jantava e lá ia para seu cantinho. Sentava diante de uma antiga mesa de madeira. Acomodava-se numa cadeira com uma almofada de tecido já estragado.

 

Dispensava os pequenos e médios confortos. Colocava uma música. E lá ficava. Escrevia por horas. Noite adentro. Algumas vezes reclamava dos dedos doloridos. Outras vezes das costas. Mas não parava.

 

Certa vez alguns dos papeis manuscritos caíram. Deviam ter caído. Estavam no chão. Como que abandonados. Ou descuidados. E amontoados.

 

Ele viu que ela o observava. E comentou com ela. Olha os papéis no chão. Nunca antes assim ficaram sobre o frio do mármore. Espalhados, misturados. Estes papéis falam de dor. De tristeza. Denunciam muita solidão.

 

Mas deu um sorriso. Acariciou os cabelinhos dela. E falou. Diante dos papéis assim. Caídos. Quase abandonados. Será que sou eu ali.

 

Juntou os papeis para ele. E os colocou sobre a mesa.

 

Não compreendeu muito bem. Mas lembrou que foi dormir muito triste naquela noite. E que evitou se mexer na cama. Acordou pela manhã quase na mesma posição que adormecera. Foi difícil até mover a perna.  

 

Ela não tinha ideia do tempo - que durou a escrita. Mas lembra do dia que ele disse. Vou publicar.

 

A mãe riu. Desconsiderou.

 

Fazia muito tempo que não era mais uma romântica sonhadora. Se é que algum dia foi. Comentou isso com uma pontinha de tristeza. Pela mãe.

 

Publicou.

 

Naquela noite ele chegou mais cedo. E a chamou. Pediu ajuda.

Tinha dentro do carro muitos volumes. Muitos. Para ela - milhões. Depois soube que foram cinquenta. Uma parte grande ficara na Editora - seriam distribuídos. Uma pequena quantidade trouxera para casa.

 

Olhou para ele. Viu que tinha um brilho mais feliz no olhar. Arrumava os livros sobre a mesa com cuidado. Passava a mão sobre a capa. Abria. Relia alguns trechinhos. Fechava. Passava de novo. Repetia. E ela repetia o gestual com ele. E lembra que eles dois sorriam.

 

Naquela noite ela se mexeu tanto na cama - que o cobertor amanheceu no chão.

 

De repente - mudou o tom de voz. Como se tivesse voltado. Ao presente do presente.

 

Nem acredito o quanto falei. E só por que vi os seus papeis no chão. E quis lhe ajudar.

 

Juntou. Colocou sobre a minha mesa e saiu. Não sem antes me dar um aviso. Cuidado para não se identificar. Com os papeis no chão. Sorriu. Leve e com mordacidade. Como os sorrisos na infância. Agradeci a ajuda e o aviso.

E contei que tinha um livro dele. Em casa.

 

Ficou muito surpresa. Tropeçou na saída da sala. Quase derrubou um copo que, sossegadinho, estava numa prateleira.

 

Rimos. Estava feliz. Talvez nem tenha se dado conta disso.

 

 


Agosto 31 2009

 

Amanhecera frio. Muito frio.

 

As nuvens pareciam amigas próximas tristes. Estavam baixas e acinzentadas. A garoa da noite dava um certo brilho no chão. O asfalto devolvia pontinhos de luz. Nas calçadas a luminosidade se fazia por inteiro.

 

Quase ri. Quase. Porque a prudência ensina a não rir quando só tem sonolentos com frio em torno. Pode parecer um pouco caso. Mas enfim.

 

O quase foi por que me lembrei daquele costureiro famoso. Estilista para ser mais respeitosa.  Lembrei do que fez com a passarela. Em seu desfile. Molhou a passarela. Para dar mais brilho. E um ar de aconchego de inverno. Ficou lindo.

 

Aqui o desfile não tinha regência famosa. Muito menos assinatura. Os passos não eram ritmados. Nem o design exclusivo. Era mesmo um faz de conta que acordei. E uma certeza do horário a ser cumprido. Mais ou menos assim.

 

E amanhecera. Com nuvem próxima ou distante. Com ritmo ou com desafino.  Muito menos com pesquisa de direitos autorais - sobre chão molhado. Era fazer o dia acontecer. Isso. Já era o bastante para um dia frio.

 

Ela sentou próxima. Tinha um ar sério. Estava bem agasalhada. Uma echarpe vermelha coloria a pele branca. E contrastava feroz com o casaco preto. Botas altas davam um ar elegante. Sentou. Acomodou a bolsa no colo. Tentou colocar o som egoísta em funcionamento.

Não funcionou. Guardou de volta na bolsa. Ergueu-se um pouco do assento. Acomodou-se como possível. Parecia conformada. Talvez precisasse escutar a música interior. Vai lá saber. Mas ficou sentada. Absorta.

 

Elas entraram falando. As duas. Sentaram de costas para onde ela estava. Não olharam em volta. Não se interessaram pelo ambiente. Estavam entretidas com o tema escolhido. E nem bem uma calava a outra já continuava. Falavam o mesmo assunto em dupla. Os comentários se sucediam. O tom de voz aumentava se a queixa ou a critica era mais forte. Não tinha música. Mas a sonoridade era vibrante.

 

Comentavam. Criticavam. Ironizavam. E se divertiam com os critérios contrariados.  

 

Ela é uma pessoa muito desagradável. Eu agüento porque às vezes me dá pena. Eu diria até estranha. Discordo. De estranha ela tem nada. É mesmo muito esperta. Observou como riu ontem no cafezinho. Ele estava perto. Ela foi logo querendo se destacar. Para mim quem gosta de destaque é blog. Eu sou bem discreta.

 

E riam. Muito.

 

Vai ver hoje. Deve chegar toda arrumada porque tem reunião. Por certo passou a noite acordada treinando. Como assim treinando o que. As caras e bocas. Nunca percebeu. Ela vive de caretinhas. No começo achei que era um tique. Nervoso. Mais risos. Vai ver já chegou lá. Deve estar escolhendo o lugar onde sentar. Para ficar diante - você bem sabe de quem. E gorda como está ficando vai ocupar toda a frente. Mais risos.

 

Algumas pessoas olhavam. Elas rindo – alheias. Não faltavam detalhes. Previsões. Análises. Conclusões. Mas nem bem fechava um ciclo – lá vinha outro. Até falavam simultâneo. O assunto parecia realmente empolgante. Afinal – vencera o sono. Desconsiderara o frio.

 

Notei que ela estava atenta. Muito atenta. A cada fala que escutava com precisão – o olhar ia se transformando.

 

Primeiro o som. Depois a imagem.

 

Tudo começou quando escutou as falas. Ergueu-se um pouco. Identificou as pessoas. Foi o que pareceu. De inicio – fez olhar de espanto. Com a continuidade – fez olhar de tristeza. Mas não se movia. Só o olhar se expunha.

 

Olhou para mim. E falou. Com voz tão triste quanto o olhar. Com as mãos apertando a bolsa.

Elas estão falando de mim. Sobre mim. Nunca pude imaginar. Trabalhamos há muitos anos juntas. E muitas vezes saímos em um final de semana ou outro. Não sabia que pensavam assim. Houve uma vez. Ela foi um pouco ríspida. E fez um critica sem propósito. Mas achei que era o cansaço. Nunca questionei.

 

Nada respondi. O que menos importava ali era uma resposta. Até porque resposta era o que mais tinha. Tinha resposta para tudo. Para o presente. Para o passado. E talvez – para o futuro.

 

Ela levantou. Ficou diante das duas. Assim. De pé. Diante delas. Com bota de salto. Echarpe vermelha. Casaco preto. Deu vontade de gritar olé.

 

Primeiro a imagem. Depois o som.

 

Disse apenas uma frase curta. Tenham um bom dia. Só isso. E um imenso silêncio se fez.

 

Fiquei pensando em sincronias. E se o som egoísta tivesse funcionado. Se tivessem se atrasado. Ou se adiantado.

 

Lembrei a minha avó. O Tempo sempre interfere no Espaço, menina, o Tempo sempre interfere no Espaço.

 

Chegou o local de descida. Ela me olhou de volta. Fez um cumprimento formal com a cabeça. E saiu.

 

Elas saíram atrás. E a seguiam de perto. Parecia que tinham perdido o esqueleto. Estavam disformes. No andar. No gesticular.

 

Ela altiva – caminhava na frente - com aparente tranqüilidade.

 

Sumiram na multidão.

 


Agosto 24 2009

 

A fila estava grande.

 

Um pouco de impaciência de um ou de outro. Pernas trocadas a cada minuto. Olhares solicitando cumplicidade se cruzavam e desviavam.

 

A responsável pelo registro saiu.  Assim. De repente. Levantou-se da cadeira giratória e saiu. Parecia em busca de algum auxilio. Não deu para saber. Só se sabia que demoraria ainda mais a espera.

 

Foi imediato. A responsável saiu e ela fez uma expressão de total desamparo.

 

Era a primeira da fila. Era bem jovem. Magrinha. Não muito alta. O cabelo amarrado para trás. A roupa despojada. Uma amiga a ajudava com os poucos pacotes que segurava.

 

No momento que a moça levantou e saiu - fez aquela expressão. De total desamparo. Virou-se para os lados. Para trás. As mãos continham o que comprara.

 

A amiga não sabia muito como agir. Ao menos parecia. Porque falava nada. Estava, talvez, um pouco assustada. Só isso.

 

Outra encarregada apareceu. Séria. Não se dirigiu a ninguém.

 

Ela falou quase como uma súplica. Curvou-se sobre si mesma. Como se dominada por alguma dor forte. Curvou-se. E falou para ela. Não podia demorar. Precisava pagar logo o que comprara.

 

A nova encarregada olhou para ela. Nada respondeu. Olhou para as pessoas da fila. Indiferente. Ia saindo quando ela repetiu. Ainda meio recurvada. E com a pele pálida.

 

Meu marido morreu. Esta roupa - vim comprar para enterrá-lo. Não posso demorar. Estão esperando. Preciso ser atendida rápido. A amiga colocou as mãos sobre o ombro dela. O gesto muito mais do que ampará-la parece que a deixou mais curvada.

 

Difícil um peso maior do que o de uma perda.

 

Olhei para as mãos dela. Segurava uma camisa lilás. Uma gravata roxa e uma calça preta se embaraçavam entre meia e roupa íntima por entre os braços dela.

 

Quando se sabe que uma roupa é para vestir um morto - a roupa parece ficar mais vazia ainda.

 

Deveria ser tão jovem quanto ela. E magro. A roupa era de tamanho pequeno. Falou algo sobre os sapatos. Precisava de sapatos. Mas era tudo sempre tão longe. Um departamento do outro. Estava agoniada. Angustiada. Talvez mais que isso. Parecia portadora de uma solidão imensa.

 

Todas as decisões pareciam ganhar a cada momento mais peso. E os ombros dela pareciam – a cada vez mais - suportar menos. E se curvava a cada gesto que fazia em direção ao que comprara.

 

A nova encarregada decidiu-se por ajudá-la. Quando começou a digitar os preços – ela olhou o relógio. Repetiu sobre a pressa.

 

E mais uma vez se curvou sobre si mesma.

 

Aquela cena era tão real que já sugeria uma irrealidade.

 

Olhei para as cores da roupa que ela escolheu.
Vestia o morto de morto.
Mas pedia pressa. Não podia demorar.
Talvez a pressa em atender ao morto o fizesse - temporariamente - vivo.

Olhei para as pessoas da fila. Ninguém mais falava. Sugeria um Teatro – não fosse a Vida.

 

Os que estavam sozinhos observavam – parecendo desprotegidos. Os casais talvez mais expostos - diante da perda exposta dela. Uns se tocaram. Outros ficaram mais próximos. Outros se afastaram. Outros ainda disfarçaram como se não fizessem parte daquela fragilidade universal. Ainda teve quem abandonasse as compras nos carrinhos e saísse. Fingindo afoiteza.

 

Cada um com sua verdade ou sua mentira. Cada um escapando da certeza única pelo viés que suportava.

 

O dia era sábado. Duas horas da tarde.

 

Não pude deixar de lembrar o poetinha. Falava da perspectivas do domingo em seu poema. Pensei no domingo dela. Quando o relógio não lhe pedisse mais a urgência. Quando as roupas ocupadas se fizessem vazias. Frias. Mais vazias. Mais frias.

 

Ela pagou e saiu. Saiu acompanhada pelo olhar de muitos.
E deixou para muitos a lembrança da perda - incorporada.

 


Julho 14 2009

Daqui dá para ver com clareza. O gestual dele. O aspecto excepcional. A tranqüilidade de alguma forma adquirida. A ocupação de alguma forma conquistada.

 

Ficava ele ali. Na janela. Por horas. Brincando de bolhinha de sabão. Um potinho. O arco. E as bolhinhas se fazendo, voando e se desfazendo. Umas - maiores.  Outras - menores.  Não tem hora. Não tem turno. De repente ele começa a sua possível tarefa. Dentro da impossível ordem.

 

Sopra com delicadeza, embora o corpo seja forte e pesado. A cada bolhinha para e observa. Inclina-se um pouco para frente. Como um observador do percurso. Segue com o olhar. Talvez esta seja sua única forma de se libertar.

 

Diante de todo um contexto aprisionado.

 

Quem sabe expressa sua imobilidade assim. Pela mobilidade das bolhas. Ou se faz identificado. Pela curta mobilidade. Iguais a ele – elas também têm o caminho limitado. Ou o tempo. Mas diferentes dele – elas podem sair e voar. Mesmo que depois desapareçam. Como fora de si – e conduzidas pelo vento - partir.

 

Não parece ser importante o tempo de vida. Das bolhinhas. Mas o tempo de fabricação. Assim se pode chamar. O tempo que começam a voar por determinação dele. Libera as bolhinhas. Dá uma espiadinha. Vê a saída delas. E já retoma a produção. E repete o gestual. Por horas. Calmo. Sereno.

 

Como deveria ser todo autor. Diante da própria produção.

 

Houve uma vez uma festa de Natal. Podia se escutar as vozes. Os barulhos. Observando bem podia até escutar o olhar dele. O olhar vibrava. Ansioso pelo presente. Mexia as mãos. O corpo dançava um para lá e para cá com ritmo compassado.

 

Entregaram.

 

Alguém veio. Abriu bem a janela. Ele acompanhou. Prepararam. E ligaram a máquina. Uma máquina de fazer bolhinhas. Assim. Prática. Ligava e elas saiam. Simples. E numerosas. Saiam aos montes. Muitas. De uma só vez. E voavam pela janela a fora. Com altivez. Independência. E com um barulho próprio. Uma mágica ao alcance de um aperto de um botão.

 

A princípio ele olhou. Parado. Nem ergueu as mãos. Nem acompanhou com o olhar.

 

As bolhinhas saíram pela janela e ele entrou para a sala. Assim. De imediato. Como um ballet sem música. Sem tempo de perdas. Mas carregado de perda de tempo. Com sincronicidade. Mas sem simultaneidade. Assim ficou diante da máquina. Que independia da vontade dele. Que substituía sua rotina por um aperto de botão. Não sabia como lidar. Parecia temeroso. Como se tivesse perdido o controle. Da sua vida. Da sua janela.

 

Não comandava mais. Havia uma validade na quantidade. E a ele agora não mais pertencia. Vivia sob controle. Agora perdera seu único comando.

 

Assim parecia expor. Com a saída da janela. Com o descaso com as bolhas soltas. Dispersas. Aos montes. De repente deu as costas para elas. E sumiu para dentro da casa.

 

A máquina, solitária, lá ficou por um tempo obedecendo ao botão.

 

Parou de brincar. A janela se fechou. Não mais aparecia.

 

Um dia a janela foi aberta. Ele veio feliz. Parecia feliz. Com o potinho. O arco.

 

Mas algo se modificara.

 

Antes já chegava libertando as bolhinhas. Desta vez - primeiro olhou. Em volta. Para cima. Para baixo. Para os lados. Até para dentro da casa. Segurava o potinho com um gesto protetor. O arco entre eles. Apertadinho na mão. Talvez buscasse a traição. Ou o descontrole. Parecia procurar pela ausência, muito mais que pela presença. Buscava uma certeza. Talvez tenha aprendido que até as certezas oscilam. E nem sempre estão do lado favorável.

 

Depois de todo esse cuidado colocou o potinho na murada. Acariciou o arco. Mergulhou no potinho. E sorriu. As bolhinhas saíram pelo mundo afora. De novo. Mas desta vez sob sua orientação. Sob sua guarda.

 

E manteve a produção de acordo com a própria vontade. Exibindo no rosto a expressão feliz de quem cria. Mesmo que depois perdesse o controle. Não importava.

 

A criação é mais importante que o prazo da entrega. Ou da durabilidade.

 

 


Julho 10 2009

A frase veio com néon. Assim ficou. Penduradinha. Brilhando. Questionando sem pudor. Nem constrangimento. E com insistência.

 

Sim. Outros pensamentos vieram - mas ela não saia. A tal frase. Não respeitou ordem. Não aceitou um mais tarde. Muito menos um logo depois.

 

Até um desapareça foi ensaiado.

 

Nada resolveu. Ficou.

 

Parecia decidida a ter uma resposta. Ou uma conclusão. Alguma solução teria que ter. Mas dali não se retirava.

 

Ficara o dia todo. Desde o despertar. Até deve ter sido a causa do despertar. Foi começando meio sem brilho, meio enevoada. Formulada em sílabas separadas. Com o despertar completo parece que se incorporou. Encheu-se de força e poder. Sim. Muito poder. Só este excesso de poder para vencer as abstrações. Aliás, só um excesso de poder para desconsiderar constrangimentos.

 

Podia-se até recordar as palavras do mestre Francês. Ele dizia que não entendia. Como se sabia que o pensamento vinha de dentro. E não de fora.

 

Eles são assim. Só jogam o indecifrável. O mestre austríaco queria desnudar a alma feminina. O mestre francês queria desacreditar o pensamento.

 

Enfim. Nem mestre austríaco. Nem mestre francês. Nada afastou a tal frase. Continuou ali. Brilhando a sua pergunta. A interrogação parecia bem maior que a frase.

 

Lembrei a minha avó. Ela sempre repetia isso. Como um alerta. Não tem pergunta que a formulação seja maior que a interrogação, menina, que seja maior que a interrogação.  

 

Em determinados momentos a interrogação se destacava. Em outros a frase sobressaia. Mas olhando atentamente. Não havia uma frase com uma interrogação no final. Na realidade havia uma interrogação arrematando uma frase. Pode parecer igual. Mas não é.

 

Como se faz para des-impregnar a retina.

 

Esta a pergunta. Esta a interrogação.

 

Passa-se a vida toda impregnando. De imagens. De cores. De situações. Todo um novo conceito apreendido. E fixado na retina.

 

Começa-se por imagens. E por imagens se termina. Mais ou menos assim.  

 

Em meio a elas permeiam as letras. As cores. Os brilhos. As nuances. Os adereços. Mas as imagens sempre lá. Tudo o mais gira em volta delas. Das imagens. Nomes. Endereços. Até números de registro. Estilos. Sons.

 

Inclusive o da voz.  Quantas vezes se repetem. Posso até ver. Quando fala assim - sei bem o jeito. Até quem não pode ver. Vê pelo tato. E compõe a imagem. Sabe quem é pela imagem táctil. Mãos e retina se fundindo num só arquivo.

 

A imagem autoriza. Desautoriza. Repete. Há uma genética envolvida. Uma exacerbação. Um desafio. Não se lembra de mim. E a resposta sempre vem rápida. Sim. Mas você mudou tanto.

 

Há todo um referencial pela imagem. Ela vai acompanhando, na retina - as mudanças. Ou a retina vai gravando as mudanças – na imagem. Como um jogo de slides. Mas personificado. Para cada um – seu estojinho de slide.

 

Para cada um – a retina individual faz seu álbum.

 

Como se faz para des-impregnar a retina.

 

Se a imagem desapareceu. Como ensinar a retina a não mais procurar. Como se apaga um entalhe cinzelado. Como se treina ao contrário uma retina.

 

A pergunta ficou. E ficará.  Por um tempo. Como a busca da imagem.

 

Mas introjetará algum dia. Por certo. Assim se espera. Neste dia a frase apagará o neon. O poder se fará compreensão. E a interrogação se fará um ponto. Final.

 

Com mais tranqüilidade a retina aceitará. A resposta.

 

A impregnação é para sempre. Mas não para o cotidiano.

 

 


Julho 08 2009

 

Não pude deixar de lembrar o poeta. Aprendi. A entender os poetas.

 

Eles devem ser uma obra pessoal do Criador. Vêm em nosso auxílio em momentos que não adivinhamos. Com seus versinhos delicados. Com sua forma singela de escrever. Deixam ali. Escritas. Gravadas. Suas mensagens.

 

Nada demandam. E tanto oferecem. Entendem da dor. Do amor. Da saudade. Deixam seus recadinhos. Modestos. Para que possam ser utilizados nos momentos adequados.

 

E que cada um escolha o seu verso. Já que dos momentos - não se tem escolha.

 

Nunca amei tanto os poetas quanto hoje. Nunca me curvei com tanta deferência diante deles.

 

De repente do riso fez-se o pranto.  

 

E uma enorme tristeza veio. Ocupou – ou tentou ocupar - um espaço bem menor do que ela. Faltou corpo. Faltou alma. Para dar conta de tanta dor.

 

A notícia veio rápida. Ela se foi. Passava no momento errado. No lugar errado. E se foi. Assim.

 

Não parecia verdadeira. Não parecia possível. Parecia com nada.

 

Só a memória iniciou seu comando. Com a mesma rapidez. Fez-se dona da dor. Reconheceu e registrou a perda. De imediato. E comandou. Solitária.

 

É triste a perda da parceria das lembranças. Pode tudo ser recontado. Nunca mais, porém, partilhado. Ou compartilhado.

 

A história não se escreve com duas mãos. Ou com uma idéia. É escrita a partir de quatro mãos. E um povoamento de idéias. Se não - sobra história e falta documentação. Da possível ratificação. Falta o riso solto - eu também me lembro. Falta a lágrima solidária - eu também não esqueço. Falta até o simples diálogo - nós estávamos lá na época. Agora já não há mais com quem dividir. Ou duvidar. Ou esclarecer.

 

Assim as lembranças chegavam. Desordenadas. Fora de organograma e cronologia. E os versos dos poetas se interpondo. Como um trançado. Por onde a dor, se ramificando, também se amparava. Ou tentava se amparar.

 

Como recobrindo este muro tão rapidamente desnudado.

 

Veio à mente as palavras do escritor preferido. Ele - contras as intermitências. Do susto inadmissível pelas perdas. Talvez da complexidade de um luto. O susto teria que ser se não houvesse jamais a perda. Se viesse um aviso. Este aqui não irá.

 

Na época que li – pensei. Talvez numa briga egoísta e pretensiosa. Com um autor daquela dimensão. Ele escreve muito bem.  Mas entende nada de perda.

 

Sim. Pretensiosa.

 

Mas talvez tenha um adendo. A questão pode ser – também - outra.

 

Também. O saber desde sempre da futura perda não faz menor a vulnerabilidade. A nada. Talvez todo o saber aja ao contrário. Exista para isso. Para expor a vulnerabilidade. Quanto mais saber - mais vulnerabilidade. Como leitores de dicionários. Substituindo um por um dos mistérios - para multiplicar significados. E vice-versa.

 

Não o quando. Não o se. Mas o como. As tantas formas das perdas. Carregadas de mistérios. E mal completadas – já sobrecarregadas de significados.

 

Há um hiato. Entre o momento da partida e o momento da perda. Não é igual. São momentos registrados de formas diferentes. Antônimos.

 

A toda perda corresponde um excesso. De silêncios. Do que não foi dito. Do que não foi confirmado. Até de um tempo perdido. Uma angústia se somando à outra. Na individualidade da solidão. As desculpas. As culpas.

 

Como se simples operadores de registros todos fossem.

 

O que faltou dizer, se transforma em companhia. Em relatos.  

Como uma necessidade para que o luto possa se processar. E a manhã possa continuar.

 

E até mais, minha querida amiga.

 

 


Julho 06 2009

Fiquei olhando para ele. Sentado próximo a mim. Quase em minha frente. Quase. Falando. Por horas.

 

Vi quando chegou. Foi pontual. Na hora agendada – estava lá. Era o que parecia. Estar lá. Deveria conviver com aquele grupo há muito tempo.

 

Havia uma certa desenvoltura no caminhar entre eles. E todos o conheciam. Mas poucos se dirigiam a ele. Ou poucos ofereciam um espaço a ele. Ele cumprimentava efusivo. Exagerado - até poderia se dizer. Recebia de volta um riso social. Formal e polido. Mais ou menos assim.

 

Não sentou. Circulava entre o ambiente. Os passos fortes e rápidos. Mais fortes e rápidos que a situação solicitava. Carregando, sobre os sapatos, o verniz escuro da ansiedade.

 

A postura lembrava a de uma emergência. Como se tivesse vivendo um prazo a expirar. Passava de um canto a outro. Da porta à janela. Da janela à porta. Seu corpo parecia saído de uma dança flamenca. Esguio – mas exausto.

 

Esta a idéia que sugeria. Girava sobre si mesmo. Olhava para os lados. Para cima. Para baixo. Dava uma idéia de agitação. Muito mais interna que externa. A externa apenas coreografava a interna.

 

O olhar seguia o ritmo dos passos. Da dança. Cansado. Mas curioso. Olhar ávido. Ávido por retorno. Ávido por espaço. Ávido – talvez muito mais - por espelho. Mas era um olhar ambíguo. Como os passos. A busca parecia já vir com a certeza. Parecia conformado. Como se soubesse desde sempre o acolhimento que teria.

 

Comecei a entender. Atuava para si mesmo.

 

Ainda tinha o riso. Vez ou outra escapulia. Um riso alto. Frenético. Mas parecia ter o fim determinado. Como se o riso não tivesse destinatário. Era apenas uma obrigação do remetente – para o remetente. Os lábios continham o riso com a mesma força e rapidez dos passos.

 

Por fim escolheu uma mesa. Fazia dos objetos - íntimos companheiros. Acariciava a caneta. Dobrava e desdobrava o guardanapo. Percorria os dedos pelo copo de cima a baixo. Passava de leve os dedos pela toalha sobre a mesa. Assim - também - se amparava. Muito mais que nos passos - alegóricos em sua rapidez. Ou no olhar - míope de si mesmo. Menos ainda no riso aleatório.

 

E tão rápido quanto a escolha - começou a falar. Começou a expor.

 

Sentou-se diante deles. Ofereceu-se como um totem. Desfilou tabus.

 

Lembrei o mestre austríaco. Teria se encantado. Ou se desiludido de uma vez. Vai lá saber. São muitas as nuances da interpretação. Cabem – sempre - todos os tipos e gêneros.

 

Falava a idéia e contrapunha – sozinho - a idéia adversária. Fez um diálogo monologado. Ou um monólogo dialogado. Diante de todos. Discutiu. Concordou. Discordou. Recitou. Foi enfático em alguns momentos. Depois eufêmico por poucos instantes. Em seguida alheio. E repetia – quase matematicamente - esta sequência.

 

Sugeriu grifes. Citou filósofos. Redesenhou telas. Criticou conceitos. Exortou preconceitos. Ofereceu banquetes. Em nome da audiência. Fez da retórica uma dialética. E vice-versa. Desafiou paradoxos. A dança parecia não mais ter fim.

 

Alguém tentou um aparte. Ia discordar. Começou a fala com a palavra não.

 

Incauto. Ou inocente. Não se desafia um totem. Corre-se o risco imediato de ser imolado.

 

E assim foi. Não acabou de registrar a primeira nota e a regência se fez violenta. Alterou o tom de voz. A salada quase saiu do espaço que a continha. Uma taça balançou. O guardanapo encolheu.  

 

A vítima se recolheu. Se acautelou.

 

Notei que a mulher que o acompanhava apertou-lhe o braço. Num sinal de alerta. Sempre atentas. As mulheres. Não deve ser à toa que a preservação da espécie gira em volta delas.

 

Olhei para ele mais uma vez. Desta vez de forma bem mais disfarçada. Temi por outra imolação.

 

Diante da fala. Dos gestos. Dos objetos acariciados. Da luz do sol que vinha da janela. Diante de tanta citação. De tanta teoria. Não me lembro. Jamais. De ter visto alguém mais triste e solitário.

 

E o imitei. Concordei comigo mesma. Igual a ele. E desta forma me fiz mais próxima. Mesmo silenciosa. Tentei diminuir a solidão dele. Ao menos diante de mim para mim. Novamente igual a ele.

 

Conclui. Melhor mudar de mesa. Levantei e ri. Desta vez de forma bem menos disfarçada.

 

Ele me olhou - não devolveu o riso. O almoço acabou. Sai pensando. Se a solidão tem culpa. Ou desculpa.

 

 


Julho 03 2009

Assim as cenas se fizeram. E se desfizeram.No meio da tarde. De um dia calmo. Quente. Rotineiramente útil. Formalmente inútil. Subserviente.

 

Assim pensaram.

 

Por um momento a escuta.

 

Ela aparentava ter dez anos de idade. Os demais entre seis a nove anos. Deveriam ser ao todo nove. Ela foi avisando. Vai ter que calar. Obedecer. Não tem ninguém aqui para lhe defender.

 

Ele parecia ter menos de oito anos de idade. A frase não foi pior do que o olhar dele. Solitário. Assustado. Mas capturador. Dividiam uma certa quantia. Saldo de pára-brisas e flanelas.

 

Quando o nível emocional sobe – o racional vem em auxílio. Só o contrário é que nunca acontece. Esta é uma das poucas certezas que se acumula com o tempo. Racional em excesso produz excesso de racional.

 

Parecia uma pessoa - dois olhares. O mesmo olhar assustado se transformou. Rápido. Olhou sério. Frio. Para o outro que estava ao lado. E foi completando. Se cuida você também. Quando ela sair - eu que vou comandar. E a voz era rouca. Muito rouca.

 

E assim os olhares continuavam. Trocando de assustado em assustador. Como um efeito progressivo. Ou uma contaminação progressiva.

 

No momento seguinte a correria.

 

A chuva veio súbita. Forte. Impetuosa. Sumiram os olhares. Os comandos. A voz rouca. As idades se dispersaram.

 

O temporal veio como um deus feroz. Arrancou proteção individual. Mostrou o avesso do esperado. Não havia cobertura eficaz.  Nem coletiva. Nem social. As águas tomaram conta das calçadas. Das ruas. Das casas. Até dos elevadores. Invadiu onde pode. Alcançou onde não se acreditava. As luzes apagaram. A sinalização se foi.

 

No inicio não havia movimentos.  Além da chuva. Do vento.  Parecia mágica. Pontos de venda de emergência surgiram. Muitos. E muitos tentando comprar uma garantia. Bolsas e carteiras expondo com rapidez a possibilidade da solução. Como o teatro do Absurdo.

 

Logo depois a dança.

 

Objetos voando. As mãos. Muitas mãos. Como um ballet de mãos para o alto. Mais para o alto. Uns erguiam os braços. Outros mais afoitos pulavam. Tentavam trazer de volta o que virava para o lado errado. Ou que partia para um destino ignorado.

 

Uma dança quase filosófica – não fosse a explícita realidade dos fatos.

 

A chuva - impedia a visão direcionada.

O vento – impunha as desordens com frivolidade.

Os raios - pichavam impunemente o céu.

As mãos - dançavam soltas sem regência.

Os objetos - voavam experimentando a liberdade de expressão.  

As sirenes - cumpriam a sua função de cuidado.

As luzes vermelhas - tentavam cortar caminhos sem solução. 

As portas - fechavam com rapidez.

 

O espaço sumiu. Desapareceu por um tempo. Submergiu. Não havia mais limites. Nem degraus. Aqui eu piso. Ali você passa. Era tudo uma falta só. Não sei onde piso. Você não sabe onde passa.

 

Os corpos se fizeram marcados. Pela água. Pela roupa deslocada. Sem pudor. Sem escolha.

 

Por fim um retorno ao primitivo.

 

Sob uma marquise muitos em busca do abrigo. Empurrando. Disputando. Trocando olhares frios.

 

Já que ali não tinha quem defendesse. Só restava impor. Foi o que pareceu.

 

Cada um ao seu modo. Salvaguardando o que mais interessava. Naquele momento a própria segurança.

 

Mais profundamente – a própria existência. Igual à partilha. Foi o que pareceu.

 

 


Junho 24 2009

 

Estava ali. Sentadinha. Parecia tão pequena. Tão frágil. Mas estava decidida. Isso a fazia mais alta. Mais forte.


Decisão sempre provoca uma tri-dimensão. Na expressão. Na fala. No gestual.  Vem de dentro para fora. Causa impressão e denuncia posição.  


Eram muitos hematomas. No tórax. Nos braços. Na face. Um ferimento no lábio. Parecia que sentia uma dor abdominal. Passava a mão sobre a barriga de minutos em minutos. Já não chorava mais. Talvez tivesse já consumido seu estoque conceitual de lágrimas.


Ela se aproximou. Tinha uma prancheta nas mãos. Levou-a até um lugar reservado.


Uma reserva relativa - o corpo expunha as marcas de uma situação.


Não sabia bem o que tinha dito. Achava que fora nada. Em excesso. Ou tão provocador. Mas ele estava irritado. E daí só se lembra da dor. No corpo. Muita. Lembra que pediu piedade. Usou esta palavra. Palavra errada. Ele se descontrolou mais. Quando escutou o pedido de piedade. Não parava. Ela caiu e levantou várias vezes. Até que não conseguiu mais levantar. Ele saiu.


Passou um tempo. Com ajuda de uma mesa próxima, virada, conseguiu ficar de pé. E pediu ajuda. Agora estava ali. Diante de exames e curativos. E perguntas. E desconfianças.


Sim. Sempre há quem olhe com desconfiança. Porta-se junto com as marcas – as possibilidades de culpa. Assim parecia ler no olhar dela. Mas nada falou. Estava cansada.  


Outra pessoa entra na sala - e avisa. Ele está aí. Quer falar com ela. Informamos que dependeria dela. Se aceita falar ou não. Ela terá que dar queixa para que alguma atitude Legal possa ser tomada.


Ela disse que não precisava repetir. Ela escutava. E estava ali. Falavam como se ela estivesse ausente. Mas ela estava ali. Sim. Poderia falar com ele. Poderia deixá-lo entrar. Alguém repetiu. Está certa disso. Ela confirmou com um meneio de cabeça.


Ele entrou. Olhou para ela com ar de surpresa. Tentou se aproximar. Ela ergueu a mão. Não. Só queria que visse de perto. O que fez. O resultado do que fez. Só isso. Agora vou registrar a queixa.


Ele repetiu o ar de surpresa. Por que isso. Não precisa. Perdão. Nunca mais vai acontecer. Você não sabe o dia que tive hoje. E depois ainda teve aquela ida rápida ao bar. Deve ter sido por isso. Deixa disso. Vamos voltar para nossa casa. Você não tem ninguém. Você sabe disso. Não vai ter quem cuide de você. Não vai ter quem lhe sustente. Vai morar onde. Nas ruas. Na casa de alguma colega. Sabe que não vai ter jeito. Esquece isso e vamos embora. Não posso perder meu emprego por uma bobagem de uma briga em casa. Faz favor. Nunca mais vai acontecer. Você sabe que lhe amo. E temos os nossos planos. Vou ao seu emprego. Digo que você ficou doente. Eles vão entender. Uns dias em casa e - tudo voltará ao normal.


Assim ele falou. Assim ela escutou. Sentada na maca. Tocando a barriga dolorida. Abrindo o olho com dificuldade.


Ele repetiu. Vai trabalhar muito. Vai ficar sozinha. Não vai ter quem lhe proteja. Não vai encontrar mais companhia. Vai viver na solidão. Esperando que alguém lhe queira um dia. Mas você não vai conseguir.


Falou já irritado. A enfermeira deu um passo à frente. Olhou para a porta. O segurança caminhava já em direção à sala. Ele falara alto.


Nessa hora ela riu. Ou esboçou um riso. Então era assim que seria a vida dela. Dali para frente. Não entendeu a diferença. Dali para trás. Sempre fora solitária. Trabalhava muito. Não tinha beijo. Não tinha abraço. E agora ele dizia isso. Enfim. Até ficou grata a ele. Ele formalizara o que ela vivia sem assimilar.


Mandou que ele saísse. Pediu um espelho. Chorou. Diante do espelho. Da sua imagem retorcida. Distorcida. Ferida.


Quando acabou o curativo e os exames necessários – registrou a queixa.


Muito tempo depois a re-encontrei. Tinha uma expressão tranqüila. Morava sozinha. Comprara sua moradia. Assim se referiu. Tinha sido promovida no emprego. Estava bem. Sorria com suavidade.


Não perguntei pelo percurso. Pelo discurso. Pelas dores. Nem pelos amores. Apenas a abracei. 


 


Junho 21 2009

Ele se fora.

 

Tempos depois que se deu conta. Nunca se sentira tão só na vida toda. Até aquele dia. Quando ele se foi. Solidão. Ampla e irrestrita. Fiel. Apegada a ela.

 

Na cidade para onde se mudara com ele não tinha parentes. Nem padrinhos. Nem comadres. Pensou isso e até riu. Tinha amigos. Mas não tinha ombro amigo. Isso veio descobrir na época. A diferença entre amigo e ombro amigo. É muito mais que filosófica. Ou conceitual. É material. Assim. Nua e crua verdade. Talvez melhor definindo. É factual.

 

Espalhou as cinzas onde ele pediu. Junto com os filhos. Ainda menores. Obedeceu ao pedido. Cumpriu as promessas.

 

E se viu só. Duas crianças. Sem a casa – ele vendera pouco antes de partir. Sem o carro – ele fizera o mesmo.  Num pequeno imóvel alugado. Desconfortável. Amontoado. Cobrira as janelas com um papel. Da rua se via a intimidade dela.

 

Sempre repetia uma frase. Página virada. Página virada quer dizer muito. Tem relação com o tempo. Tem relação com o espaço. Tem relação com o ato. E foi desse tripé que se amparou.

 

O tempo. Esse foi sua primeira intervenção. Noite e dia passaram a ter um só relógio. Nem sol. Nem lua. Rapidamente vistoriou papéis. Aprendeu a ler documentos jurídicos. A interpretar cantinhos de seguros. Leu todas as letras minúsculas – e põe minúsculas nisso – dos contratos. Estudou tanto que até discutiu com advogados. Com contadores. E os convenceu.

 

Vencer já era uma outra etapa. Agora precisava primeiro convencer. Convenceu. Isso em tempo recorde. Em menos de um mês deu entrada em protocolos nunca dantes imaginados. A cada resposta tediosa que escutava de é só aguardar – devia fazer um olhar especial. Especial de assustador.

Porque todos emendavam. E garanto que vai ser logo. Descobriu assim que se pode domesticar até o tempo.

 

O espaço. Concluiu antes de qualquer aviso. Não poderia continuar ali. Naquele lugar exposto. Eles que sempre foram tão recatados. E decidiu que iria ser dona de novo. Entendeu bem o significado de Casa Própria. Aí cabiam as letras maiúsculas. Aproveitou todas as brechas da sua profissão.

 

Montou um novo viés. A aceitação foi excelente. Juntou daqui. Catou dali. Economizou de lá. Em dois meses já estava se mudando. Desta vez para um lugar bem alto. Vigésimo andar. Devassado talvez por algum passarinho mais afoito. Apenas.

 

Eles ficaram felizes. Comemoraram o quarto novo. Individual. Com seus códigos e insígnias. Nesta noite dormiu tranqüila. Sentiu que albergando – se albergava. Antes de dormir olhou em volta. Sorriu. Discreta - chorou.

 

Dormiu com tanta segurança que pela manhã até perdeu a hora. Todos riram. Isso nunca acontecia a ela. E todos gostaram de voltar a rir em conjunto. Foi um desjejum perfeito. Do corpo e da alma.

 

O ato. Organizou a rotina. Horários. Compromissos. E cada um fizesse a sua parte. Para que todos pudessem usufruir de uma tranqüilidade comunitária. Esta virou a palavra em seguida ao ato. Não sabia se esta era a ordem certa. Palavra - primeiro.  Ato - depois. Ou, ato primeiro - palavra depois. Fazia tempo que não pensava mais no Fiat Lux. Agora a sincronicidade se fazia necessária e impositiva. Leis teriam que ser cumpridas. Os filhos entenderam.  Se não entenderam – aceitaram.  Isso era o de menos. O importante era prosseguir com maturidade.

 

Até ria quando pensava isso. Maturidade é coisa de quem tem tempo. Para ficar com pequenos devaneios. Para extrair grandes conclusões. Ela não tinha dedicação para tanto. Para a filosofia. Estava - cada dia mais - pragmática. E isso agora era amadurecimento. Pragmatismo. Que fiquem os desavisados com suas conclusões igualmente desavisadas.

 

Teve uma instante de contra-senso. Para dar conta – perdeu as contas. Em meio a papéis e decretos – comia. Barras e barras de chocolate. Nem sabia quantos. E a noite ficava mais doce. Esta a desculpa interior. Interior.

 

Porque o exterior se impunha sem desculpas. Foram quinze quilos. Este o saldo da tal página virada.  

 

Mãos à obra. Nada de excessos. Se auto-limitou. Lá se foram os quinze invasivos quilos. Cabelos cortados. Tingidos. Luzes. O que mais gostou.

 

Também era uma adoradora das metáforas. Luzes nos cabelos.

 

Com sua casa. Com seu carro. Com seus filhos. Com sua profissão em atividade. Deu conta.

 

Se perdeu algo nesse meio tempo – nem notou. Meio tempo. Assim poderia se resumir até de forma poética.

 

Meio tempo. Ação inteira. Espaço completo. Agora sim poderia dizer aquela palavra - que no começo se sentia tímida.

 

Ela vencera.

 

 


Junho 20 2009

Ela ia falando. Eu ia acreditando. Ela não era de criar contos. Ou de sublimar encontros. Era de efetivar desencontros. Se não estava bom – destituía. Por isso fui acreditando quando avisou. Acabou.

 

Ele ia viajar. Passaria trinta dias fora a serviço da empresa. Naquele país privilegiado. Boa música. Maravilhosas orquestras. Vinhos de especiais safras. Bosques. Rio com nome de valsa. Para completar - até aquelas tortas irrecusáveis. Era bem para lá que ele iria. E para lá ele foi.

 

Observou. Não sentiu saudade da parte dele. Nem uma mínima expressão de quanto-tempo-longe. Sentiu que ia feliz. E que surgira um certo ar juvenil. Juvenil até demais. Olhou. Mudou o ângulo do olhar. Quis ser a mais justa e o menos paranóica possível.  Respirou.

 

Decidiu pesquisar. No caso de estar errada – pediria desculpas. Mas não era mulher de julgamentos errados. Era boa nisso. A própria profissão lhe exigira e lhe qualificara desta forma. Era boa em avaliações. Por isso – mesmo sabedora antecipada – temeu. E tremeu.

 

Abriu a mala. A dele. Perto da hora da saída. Ele – desatento - dava os últimos retoques na imagem. Não a viu abrir. Ainda bem. Porque o olhar dela fora da ordem do selvagem. Do devastador.

 

Encontrou. Vários presentinhos. Que delicadeza. Deveria ser uma princesinha. Sim. Por certo não era para ele usar. Eis algo que tinha absoluta certeza. Esboçou até um risinho. Mas daqueles tetânicos. Com trismo. As crisálidas devem ter trabalhado só para aquelas compras. Eram realmente belas sedas. Suaves ao toque. Belas cores. Fortes. Sedutoras. Mas delicadas no recorte.

 

Agiu.

 

Fechou a mala. Deixou dentro as lindas caixinhas intactas – porém ocas das delicadezas. E ela. Ali. completamente fora - plena de tristeza.

 

Ele se despediu. 

 

Um abraço mais rápido. Um beijo menos efusivo. Não precisa me levar. O motorista virá. Fica em casa mesmo. Olhou para trás mais uma vez ao entrar no carro. Comentou algo sobre a casa. Deu mais um adeus. E saiu.  Assim. Como um ato perfeito de premonição. Ou como um ballet contemporâneo. Cada dançarino com seu ritmo. Mas num mesmo palco.

 

E assim pareceu ser.

 

Enquanto ele de lá se assustava. Ela daqui se mobilizava. Discussões. Exageros. Emoções. Desculpas. Perdões. Nada resolveu. Avisou que era já um assunto encerrado. Um mês se passou.

 

Comecei a rir. Não foi à toa que aquele filósofo diplomata Francês ganhou o ilustre prêmio.  Entendi muito bem o que ele explicava sobre o riso. É preciso exceder duas vezes o trágico para que seja cômico. Começou a ficar cômico.

 

Assunto encerrado é o termo mais flexível que se utiliza. Ou que se desconsidera. Todos buscam a nota de rodapé. Sempre se espera uma báscula. Ele não fugiu à tal regra.

 

Voltou.

 

Chegou com as malas. Tentou abrir a porta. Não conseguiu. A chave desobedecia. Ou a fechadura não reagia. Compreendeu de imediato. Esbravejou. Um homem tão ilustre. Esbravejou.

 

Ela firme – mas assustada - telefonou para aquele número hollywoodiano. Sim. Porque até aquele dia só o reconhecia por filmes. O tal número. Veio o reforço. Ele desconsiderou. Também fez outra ligação. Para o mesmo número. A esta altura já mais suburbano que hollywoodiano. Veio outro reforço.

 

Uma porta.

 

De um lado – de dentro – ela. E sua decisão.  

Do outro lado – de fora – ele. E sua intenção.

 

Para completar as malas. Duas policias. E a porta. Imóvel. Fria. Só não diria ausente porque esta palavra não cabia. Mas ficava ali. As policias negociavam entre si. Alguém tinha que ser convencido. Demorou. Mas enfim - um consenso.

 

A porta não abriu. Ele deu as costas e se foi. Ela foi para o quarto. 

 

Nesta noite chorou. Toda a noite. Se culpou. Se recriminou. Se descabelou. Se perdoou. E se curou.

 

Não cedeu. Sabia que a concessão lhe cobraria um preço maior que a possível solidão anunciada. E o que está destituído – não pode ser restituído.

 

Pensou algo por aí. Pensou muito mais. Talvez nunca tenha pensado tanto durante uma noite. E teve mais certeza quando a noite se foi. Concluiu. No final cada um é refém dos próprios atos. Que cuide muito bem, então, do próprio cativeiro.

 

Pela manhã abriu a porta. Saiu. Para o trabalho. Para a responsabilidade. Para os propósitos e os projetos.

 

Nada quis. Nada pediu. Só caminhou no percurso que escolheu.

 

E recuperou a si mesma. Por inteiro.

 

 


Junho 19 2009

Morara toda a vida lá. Numa cidadezinha onde a terra, o sol, a lua, a pouca chuva - eram as fronteiras e as sem-fronteiras conhecidas.

 

Apaixonara-se. Talvez. Mas ele disse que iam morar juntos. Que ia cuidar dela. Acreditou. Talvez.

 

Ficou grávida. Nem chegaram a morar juntos. Nem ele cuidou dela. Foi não-sabe-para-onde. Um lugar por certo bem distante. Não soube mais dele.

 

Viveu de talvez. Foi amparada pelos parentes. Desamparada pelos mesmos parentes. Acolhida e cobrada. Não tem rima, mas tem realidade. Talvez.

 

O tempo passou. Numa conta certa. A barriga cresceu. Sentiu uma dor.

 

Talvez tivesse chegado a hora. Assim falaram para ela. Foi para um pequeno hospital. Nasceu. Menino. Bem pequenino. Deu o nome do santo do dia. Viu num calendário do hospital. Decidiu. Seria este o nome dele. Foi o primeiro nome que viu depois que ele nasceu. O santo ajudaria. Confiou nos sinais.

 

Notou que estavam todos um pouco sérios. Começaram uma explicação. Curta. Mas prolongada. Para quem não sabia muito bem o que explicar.

 

Assim pensou.

 

Segundo entendeu do médico ele tinha um probleminha. Mas quem sabe teria alguma solução. Talvez. Precisaria de muitos exames. Na cidadezinha não havia possibilidade.

 

Assim começou a tecer a poesia dela.

 

Com a ajuda de amigos e vizinhos conseguiu uma consulta numa cidade próxima. Talvez melhor equipada. Nada concluíram. Nem diagnóstico. Nem prognóstico.

 

E de versinho em versinho chegou até a cidade grande. Enorme. Uma viagem longa. Difícil. Mas enfrentou. Todo o tempo. Noite e dia sem dormir. Cuidava do filho no espaço minúsculo do assento onde estava.

 

Quando chegou nem sabia bem onde - e já estava no hospital. Com o filho. Se sentiu igual a ele. Sem prognóstico. Mas aguardou.

 

Estava muito magra. Tinha os músculos dos braços bem marcados. Era bem jovem ainda. Mas as marcas da pele desconsideravam a cronologia. Ou o contrário. As mãos rudes e ásperas pareciam leves. Tocava os cabelos do filho com muita suavidade.

 

Sentada com ele no colo escutou o que buscara. Uma certeza. Qualquer uma serviria. Não poderia era administrar os não-sei. Não suportaria mais talvez. O saber lhe dava nomes. Diminuía a angústia. Permitia o medo.

 

Medo é mais fácil de assimilar. Porque já se sabe do que é. Na angústia fica-se balançando numa dor que não tem vínculo. Nem com o corpo, nem com a alma.

 

Estava cansada de talvez. 

 

Definido. A doença era sem resgate. Haveria uma aparente evolução física normal - tempo de calmaria. Assim tentava entender. Depois uma queda na evolução natural - até a fase terminal. Não seria muito curta. Mas também não seria muito longa. Passaria por vários estágios. Seriam necessárias algumas intervenções. Algumas mais complicadas. Outras mais simples. Mas faria muitas delas.

 

Foi-lhe dito assim. Com delicadeza. Mas com a sinceridade necessária.

 

Escutou. Compreendeu.

 

Abraçou o filho. Sorriu para ele. Disse com um sotaque forte. Vamos tocando a vida. Já chegamos até aqui. Parecia impossível. E já chegamos. Agora vamos continuar. Consegui um lugar para nós dois morarmos. E um trabalho que posso também ficar com ele. Vou mudar. Não volto mais para lá. Aqui ele terá melhores cuidados. De onde vim - vai ter nunca o que tem aqui. 

 

Olhou em volta. Para cima. Para as paredes. Deu a impressão de que olhava toda a cidade. Daquela cadeirinha onde estava sentada – visualizava a geografia. Um vôo além do marcado. Dimensionava o espaço numa forma de reduzi-lo. Do tempo já entendera. E não queria mais discussão sobre quanto. Nem quando. Escolhera apenas o onde. Isso era o que entenderia dali em diante. Do onde.

 

Falou com a métrica certa. Uma estrofe perfeita. Onde as palavras faziam marcações corretas.

 

Não havia queixa. Não destacava lamentos. Muito menos referência a sorte. Ou à falta dela.

 

Havia emoção. Solidão. Intenção. Ela era toda a atemporalidade.

 

Quando levantou sorriu com ar de criança. Talvez o único instante em que a idade cronológica se igualou à aparente. Pareceu tão frágil. Tão assustada.

 

Mas se recompôs rápido. No instante seguinte já carregava o filho. A esperança. As certezas. E a força. Visível nas veias dilatadas do braço fino, mas musculoso. Na sacola que segurava tinha o desenho de uma flor.

 

Tinha dor. Mas tinha flor. Tinha rima. Tinha certeza. Tinha valor. Tinha clareza. Tinha pranto. Tinha santo. Ele tinha partido. Ele tinha nascido.

 

 

Somando tudo, tinha tanto. 

 

 



Junho 09 2009

De repente chegou a mensagem. Uma longa mensagem. Depois de muito tempo. Nem acreditei quando vi o nome no remetente. Ela estava ali. Se despojando. Não se expondo- mais se impondo. Relatando o silêncio. Muito mais que as palavras. Mas também não poupando palavras para falar do silêncio. Não se justificava. Se diagnosticava. Foi o que me pareceu.

 

Passei dias lendo e relendo.

 

Deve ser assim quando não se sabe as respostas. Muito menos as perguntas.

 

Como dizia a minha avó. As perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas, menina, as perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas.

 

E por isso fiquei assim. Só lendo. Relendo.

 

Contava que se afastara dos mais próximos e privilegiara os mais formais.

 

Os mais distantes. Buscava quem não via há dez anos. Mas não queria conversar com quem se despedira ontem.  

 

Fiquei com uma dúvida. Nunca os mais afastados – ou formais – mudarão de posição. Será assim. Posição estagnada. Ou será que vai se girando. Cada vez que a proximidade vence – passa-se a diante. Isso também não combina com a ela que eu conheci.

 

Continuei. Fez outros relatos. Sobre o choro fácil. Desautorizado, mas dominante. Sobre o sono difícil. Autorizado, mas desobediente. Sobre as condutas idealizadas. Banalizadas, mas sequeladas.

 

Fiquei eu estagnada. Nem próxima. Nem distante. Nem há dez anos. Nem ontem à noite. Por muitos dias. Nem sei mais quantos. Acho que fiquei projetada. Vai lá saber. Vai ver um silêncio puxa outro. E a memória não perdoa. Lembrei a frase do Francês. Quando a falta é muito grande as palavras também faltam. Devia ser isso. Faz tempo que não discuto com o Francês. Tenho me identificado com as idéias dele. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu concordar com as idéias dele. Do Frances. Mas enfim.

 

Lembrei de outra amiga. Também recém retornada. Nova sincronicidade. Mas esta me desejou serenidade. Vai ver alcancei. Ela deve ter me desejado com muita fé.

 

Ela é linda. Tem um sorriso lindo. Cabelos mais lindos ainda. Um estilo doce. Afetuoso. A voz dela só me traz vontade de sorrir. É uma voz sincera. Até pueril. Não tem voz de adulto desconfiado. Tem voz de criança crédula. Mas com a profundidade de quem já sabe. Ou de quem já duvida. Só de pensar – escuto. O jeito dela de falar meu nome. Rindo. Meu nome sempre vinha acompanhado de um riso. Com sotaque. Transmite segurança. Mas nem por isso é alheia. Aos sentimentos cruéis da humanidade. Reconhece os limites. Percebe as distorções dos limites. Inteligente. Mente interpretativa. Talvez esta a melhor definição dela. Possuidora de uma mente interpretativa. E refinada. Muito refinada.

 

Lembro das noites e noites que passamos nos comunicando. Com letras. Sem voz. Sem imagem. Diminuindo distâncias. Uma em cada exílio. Tentando fazer dele – do nosso exílio - o nativo. O natural. Sem raízes – mas com caules. Algo por aí. O monitor deveria se assustar de tantas risadas. Pela pobreza das nossas supostas metáforas. Ríamos e chorávamos. A nosso favor e contra nós.

 

E quando ela vinha. Saia do exílio dela e vinha até o nosso. Ele até ia dormir.

 

Sabia que a conversa seria longa. In vino veritas. Sentadas na cozinha. O vinho belo, formoso, sofisticado. Em nossa frente. Depois acabado, destituído, garrafa. No lixo. No intervalo - falávamos. Muito. Entre risos e risos. A veritas sempre vencia. 

 

Não posso. Imaginá-la chorando. Insone. Incrédula. Solitária. Racional. Escolhendo os distantes. Se distanciando dos próximos. Se aproximando dos rótulos. Guardando bulas. Escondendo sinapses. Alternando químicas. Seqüenciando idéias. Afastando atos. Colecionando saudades. Vivendo de social. Ou socialmente vivendo.  

 

Leio o aviso. Da distância concedida. Proibido particularidades. Só amenidades. Não chegue perto. Pode falar daí mesmo. Do portão. Cuidado. Ouvido bravo.

 

Mas quero que saiba. Adorei. Fiquei feliz. Com a proximidade distante. Ou com a distância aproximada. Tanto faz. Não importa. Importa é que podemos continuar. Seja onde for o tal portão.

 

Assim é a amizade.

 

Quase beijei o mensageiro.

 

 


Maio 23 2009

Não vou dizer que foi um susto. Susto agora tem uma nova conotação. Pelo menos para mim. É sempre bom. Ou prenúncio de coisa boa. Mas enfim. Poderia dizer que foi um mau momento. Aconteceu no segundo exato. Eu caminhava e ela falou. Uma sincronicidade.

 

Estava subindo a ladeira. Caminhando. Calmamente. Para ir cuidar daquele comum pecado capital. Afinal a festa estava quase na hora. E eu estava quase na hora da festa. Algo por aí. Talvez um excesso de sincronicidades. 

 

Escutei um tom irritado. Vi um braço masculino parado de lado de fora. Do carro. O carro estacionado sob a sombra de uma árvore. Talvez uma busca cuidadosa do invisível. Nem bem pensei isso e escutei.  Ela falou bem alto.

 

Não parecia preocupada com a sombra. Nem com a árvore. Muito menos com o invisível. Gritou de dentro do carro.  Se eu soubesse. Se eu soubesse que você não ia largar dela. Eu não teria nem começado. Falou assim. Com o fôlego semi-interrompido.

 

Ele nada respondeu.  Aumentou o volume do som do carro. E a música se fez maior. Não sei se da dor dela. Mas por certo do constrangimento dele. Ou do temor de ambos.

 

Estavam impostos muito mais que expostos.

 

Talvez ela tivesse perdido a cautela. Ou dispensado a prudência. Ou ele dito meias palavras. Ou meios sentidos. Ou tudo isso em vice-versa. Inclusive a posse da fala e do silêncio. Nunca se sabe.

 

Ultimamente tenho me dado conta das metades. Sempre assim.  Metade exposto - metade oculto. Esconde o rosto – expõe a voz. Sombras meio rabiscam – meio apagam. Metade culpa – metade prazer. Ou quem sabe, metade larga – metade fica. Metade aliança – metade promessa. Ou metade queixa – metade silêncio.

 

Subi a ladeira.  Lembrando a minha avó. Ela sempre falou. Silêncio é opção, menina, silêncio é opção.

 

Antes de virar a esquina olhei para trás. Sei que não se deve olhar para trás. Teve gente que até pedra virou. Por causa disso. Mas não consegui. Enfim. Um pecado sempre puxa outro. Até ri quando pensei isso. Não me contive. Olhei.  O braço dele já não mais aparecia. Estava para dentro da janela do carro. Desta vez o braço dela estava para fora do carro. Gesticulava com força. Como uma dança. Solitário. O braço. Subindo e descendo. Os dedos apontando. Negando. Afirmando. Pelo espaço pequeno da janela dançava toda uma angústia. Uma coreografia do desalento. Por um instante ficou meio caído. Por sobre a porta. Para depois reiniciar a dança. Talvez de um saber mal conduzido. Ou mal creditado. Ou bem exigido. Vai lá saber.  A mão parecia escrever o texto no vento. Sob a sombra da árvore.

 

Entrei. Fui cumprir o objetivo.

 

Na festa sentamos perto do cortejo. Os sinos tocaram. A porta abriu. Ela entrou. Feliz. Rindo. Caminhava com delicadeza. De acordo com a música.

 

Mas o riso era mais forte. Que a flauta. Que os violinos. O riso dela tinha toda uma música própria.

 

Encerrou a cerimônia com uma frase. Que se beijem agora. Pela primeira vez depois da celebração. Em público.

 

Estavam expostos muito mais que impostos.

 

Depois do tal beijo público, rindo, ela olhou em volta. Ergueu o bouquet. Como se ergue uma taça. Mas com muita suavidade. Como sinal de vitória. De conquista. Ele sorriu surpreso do gesto. Mas acompanhou. Ergueu o braço dele também.

 

Lembrei da moça da sombra. Da dança solitária e forte da mão. Do gesto riscando o vento. A mão dele recolhida. Sem movimento.

 

Não pude deixar de recordar a frase do mestre austríaco. O que não se revela pela fala, se denuncia pelo gesto. Há toda uma leitura possível.

 

Também pela alegoria das mãos - as dores e os amores podem sempre ser lidos.

 

 


Maio 16 2009

Conversara com ela muitos anos - pelo telefone. Não se viam. Só se escutavam. Por anos e anos. Um em cada Estado.

 

Eram colegas de escola. De sala. De brincadeiras. Falavam muitos idiomas. Inclusive – e principalmente - o pessoal. Este sim. Não se faz necessário quem ensine. Cada um já porta o seu. E o expõe ao entendedor certo. Assim é a vida. Pela vida a fora.

 

Os pais mudaram-se. Ela se foi.

 

Depois de algum tempo, um dia ela telefonou. Procurando por ele. Com sua vozinha de menina. Ele atendeu. Ficaram horas conversando. Falando. Escutando. Rindo. Às vezes sérios.

 

Conversa de infância é aquela que não falta assunto. Nunca tem ponto final. Não tem polêmica. É um discorrer suave sobre o dia-a-dia. Com leveza. Só quem entende bem o que é a vida pode ter esta leveza.

 

Depois desse primeiro dia - nunca mais deixaram de se falar.

 

Falaram por todo o resto da infância. Ele acompanhou as mudanças dela.

 

As dificuldades na escola nova. A timidez para fazer novos amigos. A falta de interesse pela nova cidade. Telefonava quase que semanalmente. E contava sua rotina. Para ela parecia ser um período menos alegre. Não se adaptava. Sentia saudades do que deixara. Dos colegas. Das professoras. Da rua onde morava. Tentava encobrir tudo isso com os telefonemas.  

 

Ele sofreu um acidente. Teve uma fratura grave no braço. Telefonou para ela contando. Com sua voz de menino. E sua dor de adulto. Ela acompanhou. Neste período telefonava quase todos os dias.  Acompanhou a pré-cirurgia. O pós- operatório. A paralisia temporária. Foram tempos também difíceis para ele. Mas escutaram - nas vozinhas um do outro - toda a solidariedade possível. Até a cura. Total.

 

Veio a adolescência. Mudanças. Namoricos. Festas. Cada um relatando as suas descobertas. Os novos amores. As novas dores. Os novos desamores.

 

Ela sofreu o primeiro impacto. O divórcio dos pais. Toda uma mudança de vida. Mudou de Estado novamente. De escola mais uma vez. Sofreu. Chorou. Ligava com mais frequência. Ele sofreu junto com ela. Compreendeu todo o doloroso processo. Amparou. Escutou. Até opinou.

 

Depois foi a vez dele. Os pais dele se divorciaram. Ela escutou. Entendeu. Esclareceu. Ele se sentiu também amparado. Até mais facilmente decodificado. Ela, já conhecedora do percurso, avisava das pedras.

 

Numa dessas mudanças veio para a mesma cidade que ele também iria morar. Ele completaria seu curso lá. Ela também. Nem acreditaram. Iriam se rever. Depois de muitos, muitos anos. Um encontro. O estilo de cada um diante um do outro.

 

Planejaram. Pelo telefone. Marcaram o encontro. Ansiosos.

 

Impossível mensurar o olhar de alguém. Muito menos a emoção. Ou a surpresa. Se despediram aos cinco anos. Se reencontraram aos dezessete anos. Outras pessoas. Ou as mesmas pessoas. Vai lá saber. O que muda. O que conserva.

 

Há o que o tempo preserva - apesar de. E há o que o tempo consome – apesar de. Cresceram se escutando. Souberam das perdas e ganhos – um do outro. Riram. Choraram. Acertaram. Erraram. Revelaram. Ocultaram. Tinham segredos e mistérios.  Nunca se separaram. Pela voz. Sempre se mantiveram ligados. Por um fio.

 

Se olharam. Se tocaram.  Se enxergaram. Comentaram da altura. Incrível.

 

Na voz a tonalidade muda. Mas não se percebe tanto. É no corpo que o tempo faz seu registro. Na transição de um corpo de criança para um corpo de adulto. Na pele. Nos cabelos. Nos dentes. Nas mãos. Nas unhas. É ai que toda uma história se inscreve.  É ai que a história de cada um se revela.

 

Resta saber ler este alfabeto particular. Eles souberam. Foi o que pareceu. De imediato. Sorriram mais que falaram. Não se sentiram tímidos. Até comentaram isso. Algo como se fosse ontem.

 

Mas lembro de uma observação dele. Um dia comentou.

 

Quando falo olhando para ela de vez em quando sinto um certo estranhamento. Como se ela não fosse ela.  Algumas vezes quando ela fala, eu me viro. Para o outro lado. De forma que não a veja. Só escute a voz dela. Daí retomo. Sim, é ela. E posso voltar a olhá-la. Já a vi também me escutar sem me olhar. Deve sentir o mesmo.

 

Nunca deixaram de se falar. Mesmo hoje adultos e casados. Cada um com seu parceiro.

 

Mas algumas vezes deixaram de se ver. Escutar ficou mais próximo - que olhar.

 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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