Blog de Lêda Rezende

Janeiro 03 2010

 

Eis uma lição que não aprendia.

 

Mesmo com a advertência da avó. Sempre tratava a véspera como se o dia marcado já fosse. Enfim – este o estilo dela. E algumas vezes - dava bem certo. Vai ver por isso persistia.

 

E desta vez não foi diferente. Lógico. Desde a véspera estava em torno do festejo.

 

Ontem. Tudo acontecera ontem.

 

Casualmente pudera sair mais cedo da atividade. E lá se foi bem feliz. Animada - até se diria.  Planejara com cuidado o trajeto. O meio para seguir o trajeto. Tudo bem adequado. O objetivo já estava definido.

 

A temperatura caiu. Estava com ares de primavera. Ela. Mas a temperatura não. O vento do inverno viera sabe-se lá de onde fazer parceria com uma consistente chuva.

 

Mas não se incomodou. Muitas vezes é bom caminhar no frio. E na chuva. Desdenhou e seguiu. Perfeito.

 

Lá chegou. Olhou. Virou. Mexeu. Rondou. Escolheu. Ou melhor - confirmou o que já havia escolhido há alguns meses.

 

Sim. Ele iria adorar. Eis mais uma certeza diante de si. Conhecia bem o jeito dele. Afinal ela o ensinara desde bem pequeno. Conforto em primeiro lugar. Para que os instantes de preguiça sejam bem tratados. São especiais esses instantes. E muitas vezes se esquece de agradá-los com o acolhimento que merecem.

 

Tudo muito bem. Resolvido. Restava apenas um detalhe. Mínimo. Aliás - de mínimo só o tal detalhe. Por que o presente não. Era grande. Poderia ser medido em cúbicos. E vinha dentro de uma linda – e enorme – sacola vermelha. De uma elegância de dar gosto. Mas este o detalhe mínimo que esquecera. Fora sobre trilhos.

 

Mas aguarda mais um. O próximo. Depois desse. Só mais uma chance. Algum deverá vir mais vazio. Eu e minhas ideias. Mas enfim. Somos mesmo uma boa dupla. Minhas ideias e eu. E lógico. Agarrada à minha bela sacola vermelha. Já somos quase um trio. Tudo bem que até lembra um trio carnavalesco. Bem que poderiam ter criado uma cor mais discreta. Um volume deste ficaria melhor num tom bege. Café com leite. Ocre. Sei lá. Mas usaram e abusaram da iluminação.

 

Foi pensando assim. Com muita calma e parcimônia – que deu certo.

 

Conseguiu chegar de volta em casa. Com sua bela sacola vermelha. A esta altura – já do agrado.

 

Já estava quase acendendo as velinhas e comendo o bolo. Riu.

Sentou-se diante do excesso de rubro. E de repente não estava mais ali. Ela.

 

Lembrou do dia. Daquele dia há trinta e dois anos.

 

Um dia mágico. Pela primeira vez saberia o que é este sentimento. Lembra de alguém lhe arrumando os cabelos. Pediu que fizessem uma trança. Os cabelos eram longos. Uma voz saltou rápida. Quase um grito. Não. Parem já. Trança não pode. Os índios dizem que não faz bem nesta situação. Não entendeu bem o que os índios faziam ali. Mas nem tentou questionar. Acatou. Acataram. Soltaram o trançado de imediato. E alguém lhe fez algo que deveria ser um-sei-lá-o-que.

 

E assim foi. Deitada na maca. Assustada. Mas feliz.

 

Escutou o primeiro tom de comunicação dele com o mundo. Um chorinho surgiu em meio aos movimentos de médicos e enfermeiras. E os fez parar e compartilhar da emoção.

 

Fixou em todos – sorrisos. Escutou algumas observações. Tudo bem. É perfeito. É lindo. Ele veio - com ele enroladinho. Ainda chorando. Colocou deitadinho sobre o tórax dela.

 

Olhou. Jamais esqueceria esta imagem. Jamais esqueceu.

 

Tocou na pele macia. Ainda úmida. Passou a mão pelos cabelinhos. Ele pareceu se aconchegar. E parou o chorinho. Um conhecimento e um reconhecimento se estabeleceram. De imediato. E para sempre.  

 

E entendeu o amor materno. Neste instante. Diante de alguns. Diante de si mesma. Dentro de uma sala gelada. Tremendo de frio. E de alegria. Uma emoção impossível de se transcrever. Uma emoção que tão-somente se inscreve. E dentro de cada um.

 

Chorou. Sentiu o coração bater mais forte.

 

Disse-lhe um bem vindo. Baixinho e emocionado. Eu amo você. De agora em diante não saberei mais o que é Vida sem você.

 

O telefone. Quase deu um pulo quando escutou o toque. O som a tirou de lá. E a trouxe de volta para cá. Não estava deitada na maca. Mas sentada no sofá da sala. E bem em frente - a sacola vermelha.

 

Mas sorriu ao escutar a voz. Era ele.

 

Queria contar sobre a surpresa de um presente. Quase caíra de costas. Era o que queria. A cor era azul. E tinha uma lista branca na lateral. Por dentro bege. Bem esperto. Riram. Festejaram.

 

Combinaram como seria o dia seguinte. Este sim. O dia exato.

 

Quando desligou continuou rindo. Lembrou uma frase muito comum. Mas nem por isso menos verdadeira. Simples e objetiva como toda sabedoria.

 

Quem herda aos seus não degenera.

 

Lá estava ele comemorando também de véspera.  Perfeito.

 

 


Novembro 29 2009

 

O acidente fora terrível.

 

Uma profissão onde o acidente era o oposto exato ao proposto. Foram cedo cumprir suas funções. Rotineiras. Tentavam colocar os pontos subterrâneos de ligação de luz. Dentro da terra. Submetidos ao mundo.

 

Na explosão – ficaram no escuro. Queimados. Lá embaixo. Os dois.

 

Retirados – foram encaminhados ao local de socorro. Desorientados. Gementes. Ainda sem compreensão. Os acidentes são rápidos. O entendimento é lento. Como uma defesa. Do corpo. Da emoção. Da sensação.

 

É preciso mais que uma explosão – para que o pensamento se adeque a uma situação súbita. Seja ela qual for. Assim eles estavam. Assim chegaram à Unidade de Emergência.

 

Corpos queimados. Retorcidos. Contaminados. Entre o que impede e o que invade – uma fronteira tinha se rompido.

 

Ela encerrara o período de especialização. Um dia avisara. Jamais voltaria a cuidar de queimados. Delicada - sentia o peso da dor já no atendimento. Rigorosa nos procedimentos – temia nem sempre ter acesso ao necessário. E diante de si mesma – assim decidiu. Não. Nunca. Atuaria em outras áreas.

 

Esta não cabia mais a ela. Em uma só modulação vocal - convenceu ao outro e a si mesma. Repetiu. Não. Nunca. Decisão exposta e imposta.

 

Escutei uma vez alguém comentar. O Universo é surdo diante de nãos e nuncas. Perfeito. Deve ser esta a explicação.

 

Eles chegaram. No momento exato em que ela chegava. Um encontro. O encontro. Inadiável. Irrecusável. Sim. Agora mesmo.

 

E a partir do encontro – quarenta dias se seguiram. Uma nova rotina se estabeleceu.

 

Durante este tempo - ambos inconscientes. Respiravam por tubos.

 

Alimentavam-se por tubos. Nada sabiam. Nada viam. Nada escutavam. Corpos presentes - nas ausências.

 

Cuidou deles no silêncio. Durante os quarenta dias seguintes acordou às seis horas da manhã. Pontualmente. Ia para a Unidade. E os operava. Todos os dias. Enxertos. Remoções. Composições. Fazia todos os procedimentos necessários. Silenciosa. Como eles.

 

E à medida que eles melhoravam – ela ia se transformando. Só descobriu isso um tempo depois.

 

Nem toda pele é externa.

Há sempre uma outra. Invisível. Intocável materialmente. Mas que também faz contornos. Que também pode ser ferida. Ou festejada. Que permeia as emoções. Reorganiza um novo corpo dentro do inconsciente de cada um. Vai se construindo junto com o amadurecimento. Não da idade. Mas da própria Vida.

 

Algumas vezes imaginava como seria o despertar. Deles.

 

O dela já acontecera. Desde o primeiro encontro. Agora restava o deles. Para complementar o dela. Mais ou menos assim - também - é a Vida. Enfim.

 

Imaginava a apresentação. A confirmação. Que diriam quando acordassem. Havia um conhecimento de um lado. O dela. E um desconhecimento do outro. O deles.

 

Às vezes até ria. Mulher. Magrinha. Com suaves traços orientais. Jovem. Não alta. Eles iriam se assustar. Mas seguia. Diariamente. Cumpria com integridade o que a si propusera.

 

Chegou o dia. Eles acordaram. Primeiro um. Logo depois o outro.

 

Se olharam. Se viram.  Se enxergaram. Assim. Pareciam se constituir pelo olhar. Primeiro individual. Depois a busca pela parceria. Numa sequência quase perfeita. Se re-conheceram.

 

Revistaram a pele externa. Iniciaram – solitários - a recomposição da pele interna. Lembraram o acidente. Escutaram a explosão. Foi um período complicado. Havia um passado não vivido para ser assimilado. Com uma etapa faltante. Qual um nascimento – só que com memória. E o resto seria composto pelo outro. Pelo relato do relato.

 

Há um ano eles a visitam nas datas ditas especiais. Gratos. Íntegros. As marcas que portam – não impedem a vida que tinham. Exercem suas atividades dentro do planejado.

 

Ela feliz - elogia. Não a ela. Mas à pele deles. À coragem deles. Mesmo que aparentemente ausentes. Venciam suas batalhas na Unidade - como na função profissional. O objetivo persistira - concluir com luz.

 

Há algo inegável. Eles chegaram. No momento exato em que ela chegava. Um encontro. O encontro. Inadiável. Irrecusável. Sim. Agora mesmo.

 

Semelhante à pele - nem toda Luz é a visível.

 


Novembro 08 2009


Eis o estilo dela. Pontualidade.

 

Talvez mais que um estilo – uma necessidade.  Para o tipo de atividade profissional. Complicada. Dificultada -  por ser mulher. Não importam as feministas. As machistas. Ou contestadores de conceitos. Ou de preconceitos.

 

Há limites que permanecem até se apagados. Isso pode não ser provado. Mas por certo é comprovado.

 

Mas enfim. Sabia disso. Por isso era exigente. Mas consigo mesma. As barreiras eram muitas. As críticas estabelecidas. Chistes e slogans circulando. Quase ameaçadores em volta dos atos e decisões. Mas não introjetava tais textos. Lia e dispensava. Digamos assim.

 

Os colegas - todos do sexo masculino. Só ela ali. Sentadinha. Aguardando os chamados. Fingindo agrupamento. Mas se sabendo solitária.

 

Avisara pelo telefone. Ainda estou presa no trânsito. Chegarei dez minutos atrasada. Concordei. Sem problema. Ainda estamos dentro do horário.

 

Ela chegou. Sorrindo. Como sempre se apresentava. Feliz. Como sempre aparentava.

 

Viera de outro Estado. Do sul. Nem se lembrava do período de vida que não trabalhara.

 

O pai tinha uma pequena fazenda. Um roçado como se dizia de onde vinha. Enorme – sob os olhos infinitos das crianças. Talvez sem exagero – sob os olhos limitados dos adultos.

 

Viviam do plantado e criado. E por vezes do vendido. Assim passara toda a infância – sem consumismo. A adolescência - sem rebeldia. A juventude – esta já com muita fantasia.  Seis crianças. O pai e a mãe. Esse o seu universo por muitos anos. E a terra.

 

Ainda escuro o pai os acordava. A mãe os aconchegava. Não com beijos. Muito menos com afagos. Mas com o acolhimento – metaforizado - do calor.

 

O calor que já vinha da cozinha. Antes mesmo de saírem das caminhas - a casa já estava aquecida com o fogo aceso. O barulho das panelas de alças de ferro fazia coro aos galos e aves madrugadoras.  E estes aos pequenos bocejos das carinhas sonolentas.

 

A mãe fazia o pão. O pai fazia as linguiças. O irmão mais velho trazia o leite - ainda quente da recente ordenhada. Quando o dia trazia a claridade do sol – já estavam alimentados e a caminho da suas tarefas com a terra.

 

Faz uma expressão quase visionária. A terra a encantava.

 

A parte dela era cuidar das sementes. Jogava com sua mãozinha as bolinhas. E algum dos irmãos jogava a terra por cima. Riu. Sempre empurrava um pouquinho mais com o pé. Como se para ter a certeza de que não fugiriam.

 

Vai lá saber. O que pensa uma criança diante da terra e suas sementes. Mas assim fazia. O irmão já habituado - esperava. E só depois que ela repetisse o gesto - seguiam para o próximo cavadinho.

 

Adorava ver as sementes. E aguardar as plantas se erguerem do chão. Ficava fascinada. Por um tempo acreditou numa magia. Uma criação própria.

 

Tinha um duende lá debaixo. Que recebia os grãozinhos. E devolvia as plantinhas. Por isso tinha que agradá-lo com as sementes. Era o almoço do duende.

 

Nunca soube de onde tirara esta idéia. Mas também nunca comentou com a família. Esta sua idéia de Agricultura. Riu.

 

A vida se fazia em torno das estações do ano. Dos nascimentos. Lembra de temores. Se choveria muito. Se demoraria de chover. Se a geada impediria uma boa colheita.

 

Isso sim. Faz parte até hoje de alguns sonhos noturnos.

Mesmo já tão distante. No tempo e no espaço.

 

Agora estava aqui. Cercada de asfalto. De concretos. A vida mudara. Não tinha mais os pais. Os irmãos casaram. Novos núcleos se estabeleceram.

 

Somente ela viera para cá. Por motivos de casamento. Agora já desfeito. Preferia não falar sobre o ocorrido. Cuida de uma filha e dois netos.

 

O desjejum até hoje é um momento especial para ela. A única refeição do dia que sente enorme prazer. Ainda acorda cedo. Antes do sol nascer já está a caminho do ponto. Em seu carro. Ao serviço dos seus inúmeros passageiros.

 

Chegamos ao local combinado. Ela ressaltou. E no horário exato.

 

Ainda senti o cheiro do pão.

 

O orquestrado barulho das panelas substituiu buzinas e freadas. Vi o duendezinho recebendo as sementes pela terra úmida. Me surpreendi com o verde da planta nascendo.

 

Lamentei. O percurso fora curto para tão bela história.

 

Olhei para ela. Uma mulher jovem. No corpo. Na expressão. Mas principalmente - na emoção. Ainda estava com o sorriso que o relato associara. E conclui. Algo se mantivera. Ela continuava plantando. Semeando.

 

Olhei para o céu. Choveria. Sorri tranquila. Os duendezinhos por certo entregariam as plantinhas.

 

Assim iniciei a minha rotina. Assim ela prosseguiu com a dela.

 

 


Outubro 29 2009

 

Lembro o dia em que a conheci.

 

Iniciava o trabalho no Projeto. Logo no primeiro dia. O grupo já estava há mais tempo. Não conhecia os membros da equipe. Mas fui lá. No local de encontro.

 

Assim me avisaram. Chegar a tal hora. Em tal lugar. Com seu material próprio para o atendimento. E lá se identifique com tal pessoa. Seu crachá estará já no local. De lá sairiam os profissionais para as áreas de atuação. Simples assim.

 

Compreendido.

 

Ela chegou - sorridente. Falando com todos. Caminhando apressadinha. Parecia ser muito delicada. Atenciosa. Todos ficavam em torno dela. Os que iam chegando – já iam fazendo círculo. E ela no meio do círculo. Sorridente.

 

Nesse dia específico falavam sobre postura. Uma observação sobre alguém do grupo. Ou sobre algum estilo. Nunca soube ao certo. Algo por aí. Lembro que respondeu. Num tom mais alto. Porém não ríspido. Quando se é carente – procura-se ser simpático. Eu sou carente. Trato todos muito bem. E riu.

 

Como se a carência fosse um adereço. E como tal devesse ser tratada.

Perfeito.

 

Me apresentei. Ficamos amigas.

 

Não eram daqui. Nem ela. Nem o marido. Estavam casados há pouco tempo. Viera por um convite profissional para ele. Parceira – aceitou. E estava se entendendo com a cidade. Já conhecia mais lugares que os nascidos e criados aqui. 

   

Continuamos em nosso trabalho. Um Projeto social. Nos reuníamos uma vez por semana - o dia todo. Contou sobre o projeto particular. Queriam um filho. Logo.

 

Sempre festejada – acabou reunindo torcida. Todos participavam. Se sim. Se ainda não. Alguns mais afoitos até do por que não. Outros mais discretos – aguardavam as mudanças que denunciassem.  Ela respondia. Acolhia. Escutava. Silenciava. Aguardava.

 

Era um tal de – este mês ainda não. Ou – não foi desta vez. Mais exames. Mais aconselhamentos. Mais pesquisas. A ciência e a tecnologia a serviço- da fertilização.

 

Não faltaram ideias. Ou sugestões. Ou indicações. Ou dados. Da Imunologia à Fisiologia – tudo visto e revisto.

 

Um dia tomou a decisão. Cansei. Chega de temperatura. De ciclos. De emergências. De privacidade alterada. De papel. De regras. De estatísticas. De relatos psicológicos. Cansei. Vai ser estilo artificial. Pragmático. Vamos dar uma força à natureza. Para isso existe a evolução. Da ciência. Da pesquisa. Dos resultados. Para ser utilizada. Vamos utilizar. Certo. Então em duas semanas.

 

Quando nasceu – já não trabalhávamos mais juntas.

 

Olhei para as fotos. Linda. Moreninha - como a mãe. Linda - como a mãe. Olhar decidido - exatamente igual à mãe. Mas ela foi logo avisando. É idêntica ao pai. Linda - como ele.

 

Contou rindo. Depois que marquei o artificial - ela veio natural. Nem conheci a equipe. Quando estava já agendado – desmarquei. Ela já estava fazendo parte da nossa vida. Da Vida. 

 

A torcida continuara. Desta vez de forma métrica. Está maior. Esta crescendo. Está sem cintura. Está com jeito de silicone. Cada um construindo nela uma nova anatomia. Com as palavras. Com o olhar. Até com a mímica.

 

E muitos risos. Sempre. A cada encontro do grupo. Todas as manhãs. 

   

Minha avó tinha uma ideia para o riso. Só é realmente feliz quem sabe compartilhar o riso, menina, só é realmente feliz quem sabe compartilhar o riso.

 

Procedia. Procede.

 

O riso compartilhado é uma das mais belas cenas de um grupo. E era assim com ela. Continuavam todos em volta. E ela feliz.

 

Lembrei o comentário sobre a carência. Transformara-se num adereço dispensável. Ou até ignorado. Não era mais uma questão. Nem um símbolo. Ou muito menos uma situação. Não importava se não era daqui. Ou se era de lá. Ela agora era duas.

 

Fiquei emocionada quando li o recadinho. Nasceu. É maravilhosa. Estamos muito bem.

 

E adivinhei o sorriso dela. O primeiro olhar para a filha desejada. O toque delicado na pele suave e rosada. O gestual protetor e acolhedor. As lágrimas fáceis da intensa atividade emocional.

 

As primeiras dificuldades para quem se inaugura - mãe. As pequenas dúvidas. Será que está certo. Será que é assim mesmo. Mas segura diante de uma certeza absoluta - o apaixonamento imediato. 

 

Lá estava. Na tela. Colorindo. Toda enfeitadinha para a foto – a Laurinha.

 

Bem vinda. Bem Vida.

 

 


Julho 05 2009

 

Querido:

        Não esqueça  de escovar os dentes deles.
  Falar para a médica sobre a vacinação, a carteirinha está na sacola
  Fale sobre as manchinhas atrás das orelhas deles

  Fale sobre a alimentação

  Pergunte se ela vai passar alguma vitamina

  Fale do dedo que a Marina não tira da boca e já está até machucado – (o que fazer?)

  Pergunte se já está na hora de sair das fraldas (o que podemos fazer?)

  Leva os exames – já coloquei na sacolinha, não achei o comprovante para pegar os outros. Acho que você levou para a Empresa e não trouxe. Leva as carteirinhas que dá para pegar.

  Lave o cabelo do Paulinho.

  O cabelo da Marina é só prender. Fala pra minha mãe fazer dois rabinhos que ela sabe.

  Dá um banho bem dado nos dois, tá?

  Ah! Traz o papelzinho que marca a altura e o peso deles para eu marcar depois na carteirinha...

  É isso. Estou indo sem querer, mas fazer o que... logo estou aí

  Um beijo

 

 

Gêmeos. Foi um susto a noticia. Eles mal tinham saído do juramento na saúde e na doença e lá estavam. Na alegria e na certeza. Sim. Eram dois. E um casal.

 

Entenderam a Vida. A arte da Vida. E a razão de viver. Entenderam tudo isso ao mesmo tempo.

 

A consulta era de rotina. Estava atrasada a fisiologia. Mas devia ser o cansaço. Viajaram logo depois da cerimônia. Na volta foram cuidar de organizar a casa nova. E isso incluía documentos e volta à rotina do trabalho. Nem se preocupou. Tinha engordado um pouco. Devia ter sido pela ansiedade. Da festa. Da viagem. De toda a mudança de vida. Da volta ao trabalho. Dos horários mudados. Estava explicado.

 

Quando a certeza é garantida - é sempre bom duvidar. A experiência é a arte de carregar – com segurança - muitas dúvidas. Assim foi a sabedoria do médico. Achou segurança demais.  Examinou. Solicitou um complemento. Era rápido. Eles, tranqüilos. Conversando e rindo.  

 

Veio o resultado. Foi cuidadoso. Perguntou se já tinham a vida arrumada.

Escutou que sim. Se estavam empregados. Escutou que sim. Se pensavam em ter filhos. Escutou um sim – mais tarde. Entendi.

 

O que vocês acham de sete meses. Acham muito tarde. Muito cedo.

 

Os que riam – silenciaram. O que silenciou – riu. Gêmeos.

 

Saíram do médico e voltaram para casa. Já da porta - no abrir da porta - a casa já não era a mesma que tinham deixado. De repente parecia tão pequena.

 

Horas antes sobrava espaço.

 

Foram a caminho do hospital combinando a decoração. Pensaram em comprar mais uma poltroninha. Quem sabe incorporar um dos quartos à sala. Seria o local da música. Mais um sofá. No terracinho – uma churrasqueira. Teriam tempo. Com calma a casa ficaria como queriam.

 

Na volta já era outra casa. Não a que eles fecharam a porta. E deram as costas. Agora abriam a porta. Olhavam de frente. Tão pequena. Não cabia mais nada. Nem poltroninha. Nem churrasqueira. Naquele minúsculo terraço. Nada mais de som. Muito menos de quarto incorporado.

 

Incorporada estava ela. Duplamente incorporada.  

 

De repente se deu conta. Nem soube dizer por que. Mas entendeu.O mundo das listas.

 

Havia este mundo paralelo. A lista do chá de cozinha. Depois a lista do casamento. Passando por uma lista de convidados. Até a empresa de turismo cooperara - uma lista de hotéis. Teve a do chá de bebê. Bebês. Duas listas. Com direito a cor. A lista das compras. Então assim era o mundo. Só não sabia como não tinha percebido. Que listas não finalizam. Nunca.

 

Agora estava ele ali. Mais uma vez – diante de uma lista.

 

Seguiu – rigorosamente. Com toda a atenção que uma lista merece.

 

Estava com os “listados” no colo. Lindos. Os rabinhos dela maravilhosos. Cheirosos após um banho bem dado. Dentinhos limpíssimos. Feliz. Felizes.

 

Na saída pegou o papelzinho com o peso e a altura para colocar - na lista de acompanhamento deles.

 

Riu. Se sentiu integrado ao mundo.

 

 


Julho 01 2009

Lembrou daquele texto. Ele falava mais ou menos assim - a pena parou.

 

Como se no meio do texto a pena tivesse parado. Ali. Estancada. Sem nada a dizer. Muito menos a declarar. Fez-se paralisia. Congelou. Atos. Não sentimentos.

 

Os sentimentos estavam tão abalados que não se davam conta. Não podiam continuar. Atropelavam-se. E ao mesmo tempo paralisavam. Sensação estranha.

 

Parecia que os fragmentos do tempo se afastavam. Deixando pedacinhos soltos. Como mosaicos abandonados – decompondo sua forma. O que era para ser continuação – virou passado. E como passado foi reportado.

 

Tudo numa mesma declarada inversão. Onde tinha que ter não tinha. Onde tinha que estar – já não mais existia.

 

De repente tudo ficara sem cor. Sem lastro. O alcance tinha sido maior que pudera imaginar.

 

A notícia viera junto com uma lágrima. Ficou ali escutando. Dizem os entendidos - em situações limites - falta chão. Parece uma metáfora sem importância. Ou uma analogia. Ou apenas uma comparação banalizada. Mas se é verdadeira não se sabe. Porque ali parecia o contrário. Sobrava chão. Muito chão. E não se sabia que lugar pisar. O que faltava era ar.

 

Se sentiu sufocada. Presa em algum ponto do discurso dela. Ficou assim. Suspensa na palavra. Presa na angústia. Paralisada na dor.

 

E ela em frente. Contando. Contendo. Relatando. Expondo a sua dor. A sua falta. O seu desamparo. Mostrando no corpo o resto inútil que lhe ficara.

 

Lembrou o Francês. Se uma perda é muito grande – a perda seguinte é das palavras. Procede. Teve abraço. Teve choro. Mas não teve palavra. Pelo menos a palavra certa. Deve existir uma só que seja. Que se diga. E que acalme. Proteja. Explique. Console.

 

Mas isso já é pedir demais a uma palavra. Ela vem em auxílio - em auxílio. Nunca em função. Parece que a palavra não tem função. Tem regra. Tem sinônimo. Tem antônimo. Tem até acento. Mas não tem função. Descobriu isso na hora. Na hora de verbalizar. Por que verbalizou silêncio.

 

Fez um esforço enorme. Para mover os lábios. Começou pelas letras. Tentou formar a palavra. Construir uma frase. Assim, desta forma. Como quem engatinha. Pensando em andar. E perdida naquele excesso de chão.

 

Não conseguiu falar. Ou melhor, conseguiu falar. Não conseguiu dizer.

 

Dizer da enormidade da dor compartilhada. Da compreensão da dor individualizada. Da certeza de uma dor materializada. Que até – de tão forte - podia ser tocada. E que não faltava chão. Sobrava espaço. Tinha agora ali, diante delas - um lugar vazio.

 

Foi tudo isso que quis dizer. Letra por letra. Mas só disse silêncio.

 

E paralisou diante da dor. Da ausência.

 

Quando ela saiu não sabia o que fazer. Com o dia. E fez o que tentou fazer com a palavra. Fez minuto a minuto. Depois as meias horas. Para depois completar o ciclo das horas. Seguiu então o compasso das horas inteiras. Fez o dia - apenas - cronológico.

 

E levou consigo os dias que não virão. Junto com este dia encerrado.

 

Haverá sempre um chão sobrando. Uma presença faltando. Haverá a ligação. Pelo elo faltante.

 

Uma ligação pela ausência. Fazendo assim bascular a impossível presença. Mas ainda assim - presença. Ou ainda assim – ausência.

 

Quando uma ordem é invertida – toda uma nova equação tem que ser estabelecida. E todo um tempo novo precisa ser – existencialmente - acreditado.

 

Ficou - em meio a este passar de dia cronológico - pensando nas idéias do filósofo alemão. Ele garantia que só a dor é positiva. Devia saber o que falava. 

 


Junho 29 2009

 

Estava calada. Aliás, nos últimos dias pouco falara. Algo estranho acontecia com o seu corpo. Sentia desânimo. Vontade de ficar na cama o dia todo. Já acordava assim. Nesse total desalento. Algumas pessoas mais próximas notaram a mudança dela. Até as mais distantes perceberam.

 

Justo ela.

 

Vivia em constante atividade. Nem bem acabava uma tarefa e já organizava outra. Fins de semana agitados. Ia ao cinema. Ao teatro. Ao parque. A Feirinha de Artesanato. Quando estava se sentindo sem opção ia até visitar canil. Mas parada - não ficava. Nada de ficar em casa deitada.

 

Alertava. Desativar a vida em Vida é ofender ao Universo. O Universo pretende ação. E lá se ia com suas idéias motoras em profusão.

 

Mas estava desse jeito. E sentia um mal estar ocasional. Em especial no final do dia. Atribuiu ao cansaço. Muito cansaço. Não sabia explicar do que. Ou contra o que. Com tudo isso acabara diminuindo o seu ritmo. Deveria estar descansada. Mas parecia esgotada.

 

Um dia acordou em absoluto mal estar. Não saiu da cama todo o final de semana.

 

Ele ficou apavorado. Ofereceu tudo. Negou tudo. Reclamou. Acarinhou. Fez sugestão de bom gosto. De mau gosto. Provocou. Ameaçou. Até comentou que devia ser coisa da idade. Aí ate se afastou um pouco. Achou que poderia sofrer uma agressão física. Mas nada a fez reagir. Ela só dormia e acordava. O esforço maior - foi mudar o lado do travesseiro.

 

Decidiu. Na segunda vamos ao médico. Ela respondeu. Nem pensar.

 

Estava com medo. Uma amiga sempre dizia. Depois que se descobre – o processo se acelera. Não. Ficaria assim. Era só cansaço mesmo. Vai ver acumulado. De muitos anos de atividade. Lá um dia o corpo cansou. Pronto. Foi isso. Mais um tempo deitada e o corpo esqueceria o cansaço.

 

Corpo tem memória fraca. Disso tinha certeza. Corpo esquece o que é frio – no verão. E o que é calor – no inverno. E vai ver o dela se atrapalhou. Confundiu agitação com inércia. E estava exercendo seu despreparo mnêmico. Isso. Até gostou deste diagnóstico.

 

Não fosse a pouca vontade de falar até teria dito isso a ele. Mas com uma certa tontura se aproximando e se afastando continuamente - achou melhor calar e pouco se mover.

 

Nada o convenceu. Na segunda foram para o hospital.

 

Ela pouco reclamou. Estava pálida. Sentia um desconforto no estômago daqueles que só se contava em filmes. Concluiu. O corpo deve estar se lembrando de algum filme. Deve ter esquecido que o final de semana acabou.

 

Foi para a sala do médico.

 

Entrou. Sentou diante dele. Ele ao lado. Apavorado. Olhava para o médico.

 

Ela explicava. Ou tentava explicar. Foi logo avisando sobre a teoria do esquecimento do corpo. Ou sobre o corpo confuso.

 

Solicitou alguns exames. De emergência. Já. Ela ainda tentou recusar. Mas a tontura a fez sentar de vez na cadeira.

 

Duas horas de espera - pelos resultados.

 

Enfim. O médico apareceu. Segurava alguns envelopes nas mãos. Avisou que precisava de mais um exame para confirmar a suspeita. Suspeita. Olhou para o marido que apertou a mão dela.

 

Entraram juntos. Ela deitou. Ele fazia o exame e olhava para a tela. Tudo que ela via era a cor sob muitas nuances. E movimentos. A esta altura já estava se sentindo mudando de espaço. E tão jovem. Quem diria.  

 

O médico sorriu. Para os dois. E falou. Não sei se o corpo esqueceu. Ou se o corpo lembrou. Mas são três. Três. Devem se lembrar em mais ou menos sete ou oito meses. Agora é seguir acompanhando.

 

O marido perdeu a voz.

 

Ela chorou.

 

Lembrou da amiga. A da teoria dos processos descobertos - e acelerados.

 

Riu. E todos riram juntos.

 

Estão lindos. Sim. Não param. Decidi comemorar. Quatro aninhos. E estão tão bem.

 

Ele está na natação. Ganhou uma medalha ontem.
Ele escolheu judô. Até incentivei. Para ver se sossega um pouco. Ele vive sob propulsão motora.  
Ele não. É tranqüilo. Adora ficar sem nada fazer. Adora uma cama e uma televisão no final de semana.

 

 

É verdade. Falou rindo. Eu nem lembrava mais disso.

 

 

 



Junho 19 2009

Morara toda a vida lá. Numa cidadezinha onde a terra, o sol, a lua, a pouca chuva - eram as fronteiras e as sem-fronteiras conhecidas.

 

Apaixonara-se. Talvez. Mas ele disse que iam morar juntos. Que ia cuidar dela. Acreditou. Talvez.

 

Ficou grávida. Nem chegaram a morar juntos. Nem ele cuidou dela. Foi não-sabe-para-onde. Um lugar por certo bem distante. Não soube mais dele.

 

Viveu de talvez. Foi amparada pelos parentes. Desamparada pelos mesmos parentes. Acolhida e cobrada. Não tem rima, mas tem realidade. Talvez.

 

O tempo passou. Numa conta certa. A barriga cresceu. Sentiu uma dor.

 

Talvez tivesse chegado a hora. Assim falaram para ela. Foi para um pequeno hospital. Nasceu. Menino. Bem pequenino. Deu o nome do santo do dia. Viu num calendário do hospital. Decidiu. Seria este o nome dele. Foi o primeiro nome que viu depois que ele nasceu. O santo ajudaria. Confiou nos sinais.

 

Notou que estavam todos um pouco sérios. Começaram uma explicação. Curta. Mas prolongada. Para quem não sabia muito bem o que explicar.

 

Assim pensou.

 

Segundo entendeu do médico ele tinha um probleminha. Mas quem sabe teria alguma solução. Talvez. Precisaria de muitos exames. Na cidadezinha não havia possibilidade.

 

Assim começou a tecer a poesia dela.

 

Com a ajuda de amigos e vizinhos conseguiu uma consulta numa cidade próxima. Talvez melhor equipada. Nada concluíram. Nem diagnóstico. Nem prognóstico.

 

E de versinho em versinho chegou até a cidade grande. Enorme. Uma viagem longa. Difícil. Mas enfrentou. Todo o tempo. Noite e dia sem dormir. Cuidava do filho no espaço minúsculo do assento onde estava.

 

Quando chegou nem sabia bem onde - e já estava no hospital. Com o filho. Se sentiu igual a ele. Sem prognóstico. Mas aguardou.

 

Estava muito magra. Tinha os músculos dos braços bem marcados. Era bem jovem ainda. Mas as marcas da pele desconsideravam a cronologia. Ou o contrário. As mãos rudes e ásperas pareciam leves. Tocava os cabelos do filho com muita suavidade.

 

Sentada com ele no colo escutou o que buscara. Uma certeza. Qualquer uma serviria. Não poderia era administrar os não-sei. Não suportaria mais talvez. O saber lhe dava nomes. Diminuía a angústia. Permitia o medo.

 

Medo é mais fácil de assimilar. Porque já se sabe do que é. Na angústia fica-se balançando numa dor que não tem vínculo. Nem com o corpo, nem com a alma.

 

Estava cansada de talvez. 

 

Definido. A doença era sem resgate. Haveria uma aparente evolução física normal - tempo de calmaria. Assim tentava entender. Depois uma queda na evolução natural - até a fase terminal. Não seria muito curta. Mas também não seria muito longa. Passaria por vários estágios. Seriam necessárias algumas intervenções. Algumas mais complicadas. Outras mais simples. Mas faria muitas delas.

 

Foi-lhe dito assim. Com delicadeza. Mas com a sinceridade necessária.

 

Escutou. Compreendeu.

 

Abraçou o filho. Sorriu para ele. Disse com um sotaque forte. Vamos tocando a vida. Já chegamos até aqui. Parecia impossível. E já chegamos. Agora vamos continuar. Consegui um lugar para nós dois morarmos. E um trabalho que posso também ficar com ele. Vou mudar. Não volto mais para lá. Aqui ele terá melhores cuidados. De onde vim - vai ter nunca o que tem aqui. 

 

Olhou em volta. Para cima. Para as paredes. Deu a impressão de que olhava toda a cidade. Daquela cadeirinha onde estava sentada – visualizava a geografia. Um vôo além do marcado. Dimensionava o espaço numa forma de reduzi-lo. Do tempo já entendera. E não queria mais discussão sobre quanto. Nem quando. Escolhera apenas o onde. Isso era o que entenderia dali em diante. Do onde.

 

Falou com a métrica certa. Uma estrofe perfeita. Onde as palavras faziam marcações corretas.

 

Não havia queixa. Não destacava lamentos. Muito menos referência a sorte. Ou à falta dela.

 

Havia emoção. Solidão. Intenção. Ela era toda a atemporalidade.

 

Quando levantou sorriu com ar de criança. Talvez o único instante em que a idade cronológica se igualou à aparente. Pareceu tão frágil. Tão assustada.

 

Mas se recompôs rápido. No instante seguinte já carregava o filho. A esperança. As certezas. E a força. Visível nas veias dilatadas do braço fino, mas musculoso. Na sacola que segurava tinha o desenho de uma flor.

 

Tinha dor. Mas tinha flor. Tinha rima. Tinha certeza. Tinha valor. Tinha clareza. Tinha pranto. Tinha santo. Ele tinha partido. Ele tinha nascido.

 

 

Somando tudo, tinha tanto. 

 

 



Maio 09 2009

O calor estava terrível. Foi assim que entrei em casa. Resmungando. Alucinando. Água gelada. Piscina com gelo. Roupa com flocos de neve embutidos. E lá no fundo da visão - uma cachoeira gelada. Água despencando de uma pedra congelada. Alucinei até nevasca. Borrasca. Avalanche.

 

Não faltou criatividade no processo alucinatório. Mas enfim. Voltei. Com calor. Sem nevasca. Sem borrasca e sem avalanche. E com um nada diplomático humor.

 

Nem bem entrei em casa e o interfone foi demonstrando o poder da sua existência.

 

Não acreditei. Ela precisava falar. Relatar. Discorrer. Pensei todas estas palavras diante de um único golinho de água. Porque já fui ficar a postos. Para o tal relato. Me senti diante de uma novela. E nem novela eu assisto.

Agora ia assistir a novela delivery.

 

Bom. Melhor parar com o mau humor e acatar. Ceder.

 

Como de hábito ela já foi entrando e falando. Desta vez faltou o choro. Se é que se pode falar assim de um choro. Choro não falta. Talvez lágrimas faltem. Mas foi logo contando. Aquele almoço tinha sido curioso.

Gesticulava com cautela. Como uma mulher esclarecida.

 

O lugar que ela sempre gostava de ir. Ele estava gentil. Comentava a mudança. As dificuldades. As alterações na rotina. Mas já estava tudo acertado. Inclusive já tinha onde morar. Que rápido. Surpreendente. E num bairro que sempre quis. Que maravilha. Estava eufórico. Muito já estava embalado. Que rapidez. E muito ainda restava embalar. Isso sempre se resolve fácil. Fez piadinhas. Nada como um plástico-bolha. Riu. Sozinho.

 

Em meio a uma mastigada e outra, ele falou. Pronta para a travessia. Assim. Esta fora a palavra. Travessia. Ela pensou mil loucuras com esta palavra. Mil sugestões. Inclusive anatômicas. Mas só pensou. Como assim travessia. Já está tudo feito. Tudo decidido. Nem sabia onde se encaixava. Ele fez nova piadinha. Encaixada. Encaixotada. Mas uma vez riu. Sozinho. Mas não pareceu notar. Em nenhuma das duas vezes.

 

Nada mais disse a ele. Silenciou. Como uma mulher desiludida.

 

Voltou para casa. Não se viram por dois dias. Hoje viera novo convite. Mais um almoço. Quase riu. Comentou algo sobre peso. Achei que poderia ser uma metáfora. Mas permiti apenas a literalidade. Pareceu mais adequado.

 

Desta vez ele repetiu os planos e acrescentou mais novidades. Ele fez alguma observação rindo. Sobre a viagem e os amigos. Ela não entendeu muito bem. Ele riu. Enfim. Riso é da ordem do pessoal. Riso compartilhado já é outro setor. E ela estava já em outro setor.

 

Melhor dizendo. Nem tinha trocado de setor. Avisara já no trabalho. Cancelara a possibilidade da transferência. Desde o primeiro almoço.

Desejou que ele fizesse uma excelente travessia. O que mais pensou não falou. Sobre a tal travessia. Deu um beijo na saída. Ele correspondeu. Avisou que ligava assim que chegasse lá.

 

Comentou rapidamente. Onde tudo tinha mudado. E onde ela perdera. Talvez uma fala. Um corte. Vai ver errara. Como continuista. Algo por aí. Mas não lembrava. Melhor fechar as cortinas.

 

Desta vez entendi que água não seria necessário. Lógico que pensei numa bacia com gelo. Mas ofereci um café. Aceitou.

 

Segurou com a mão discretamente trêmula. Mas nada derramou. Como uma mulher, talvez, amadurecida.

 

Quando se despediu - combinou um chá. Um cinema. Mas alertou. Nada de almoço.

 

Desta vez riu. Como uma mulher, quem sabe, renascida.

 

Lembrei do meu amigo indiano. O som sempre persiste, independente da veracidade do silêncio.

 

 


Maio 03 2009

Entraram os quatro.

 

Pela forma que ele entrou, previ novidades. O riso estava solto. Porém sereno. Não era um riso de irreverência. Ao contrário. Era de muita reverência. Estava com um certo ar de nobreza. Desde o virar de cabeça até o caminhar. Ele que sempre é tão afoito. Agitado. Estava assim. Com um estilo parcimonioso e elegante.

 

De repente, entendi. Trouxera a mãe. Para me apresentar. Ele a abraçou e avisou quem eu era. Lembrou a origem. A função. Ele já havia lhe falado antes. Agora era para unir imagem com relato. Ela me dirigiu um olhar sério, mas cúmplice. Foi o que me pareceu.

 

Ela viera da parte de cima do mapa. De uma região onde só as atitudes podem salvar. Palavras não causam bons efeitos.Talvez más conseqüências. São fatos diferentes.

A viagem fora longa. Difícil. Cansativa. Mas comentou que tinha tranquilidade em relação ao tempo. Ao difícil. E ao cansaço. Tudo tem um prazo. Portanto acaba.

 

Aguardou sem queixas o prazo ser cumprido. Para ver o filho. A neta que não conhecia. A nora. Os outros filhos não foram. Não dera tempo. Falou com um certo ar de resignação.

 

Tinha um rosto sereno. Expressão tímida, porém decidida. As mãos ásperas - expressavam carinho. As pernas um pouco arqueadas - denunciavam firmeza. A pele seca - tinha um toque morno. Sentou-se com recato - mas expôs seu estilo. Quando falava olhava nos olhos. Quando calava olhava para o chão. Parecia que só se dava de acordo com a necessidade. Nada desperdiçava.

 

A vida não tinha sido das mais fáceis. Comentamos da cisterna. Do nascimento deste seu filho. Do grito. Da água umedecendo a terra. Do balde caído. Da seca. Recontou a história. Lembrava da própria dor e do choro dele. Riu quando contou das amigas correndo. Apavoradas. Como se fosse o primeiro nascimento no mundo. Elas gritavam e choravam mais que eles dois. Ela que pediu calma. E foi dizendo o que fazer. Quando ficou de pé já foi com o filho no colo. Saíra de dentro dela para os braços dela. Ele fez um gracejo. Sobre a terceirização. Ela não riu. Continuou contando. Não precisou que ninguém o segurasse para ela. Uma mãe sabe como segurar seu filho. Seja qual for a situação. Olhou para ele. Como se só naquele momento lhe notasse a altura. Vi que se orgulhava dele. E de si própria. E olhou com um sorriso grato para a nora.

 

Um dia o marido a ofendeu. Desacatou. Não entendeu bem o motivo. Na pequena casa. Diante dos filhos. Quis agredi-la, mas se conteve. Só avisou. Vou embora. Antes que ele se retirasse - o olhar dela já se retirara dele. Não o olhou mais. Até o momento que saiu. E nunca mais o viu. Nem procurou ver. Um homem que dá as costas para a família não merece ser chamado. Ou convocado. E nunca mais falou dele ou sobre ele. Cuidou dos filhos. Como pode.

 

Quando ele veio de lá para cá - ela não chorou. Sentiu uma enorme tristeza.

 

Mas não chorou. Aprendeu a não gastar as lágrimas com tristezas. A tristeza sobrava lá de onde viera. Resolveu, vai lá saber por que, ser econômica com o uso das lágrimas. Ou usá-las sob suas próprias justificativas. Só chorava quando, feliz, se emocionava. Como no momento que o viu ao descer do ônibus. E viu a neta. Aí sim. Procedia. Chorou com alegria. Esbanjou lágrimas.

 

Chorou na sala mais uma vez. Ao pegar a neta no colo. E ver-lhe o riso. Acariciou-lhe a pele macia. O cabelinho. Arrumou a saiazinha dela. Discreta, secou uma ou outra lágrima mais insistente.

 

Na despedida abriu uma sacolinha. De dentro tirou algo como uma barra. Retangular. Pesada. Cabia nas duas mãos. Enroladinha num papel azul. Era um doce típico da sua região. Me entregou. Com o olhar mais carinhoso e afetuoso que faz tempo não encontro. E agradeceu. Em nome do filho. Da nora. Da neta. E da terra seca de onde viera. Fiz minhas as palavras dela. E acrescentei o nome dela ao meu agradecimento.

 

Caiu outra lágrima. Sorri. Compreendi. Ela estava feliz.


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