Blog de Lêda Rezende

Dezembro 19 2009

 

Não imaginava que fosse assim.

 

Tão cansativo. Deveriam mudar o termo. De preparativo para preparatório. Parece o mesmo. Mas não é. Como todas as palavras parecidas - não querem dizer a mesma coisa. O mesmo significado. Nunca pensei. Ou já esqueci. Esqueço fácil o que é complicado. Como é cansativo. E emocionante. Por isso é um preparatório.

 

Essa olimpíada de véspera. De viagem.

 

Lembrei da minha avó. Ela sempre me alertava. Todo prazer tem antes e depois, menina, todo prazer tem antes e depois.

 

É verdade. Não sei como não observei isso antes. Observar é o termo certo. Porque foi só o que fiz. O dia todo. Hoje. E o dia de observar deveria ser amanhã. Porque é o dia da viagem. E ainda tem quem diga que o bom são os preparativos. Ou preparatórios. Vou orientar quem me disser isso - a procurar um especialista. Em doenças do psicológico.

 

Isso já é complicado. Uma só pessoa. Dois tempos. Não pessoais. Ambientais. Um de lá. Outro de cá. No tempo de cá estou me sentindo naquela tal cidade. A da neblina. Porque é só o que vejo do terraço. Paisagem bucólica. Enevoada. Brumas. Há uma semana - brumas. Quando modifica - relâmpago. Quando ele se encerra – brumas. Depois – relâmpagos. Uma roda viva de névoa e luz. Uma calma e outra acelerada. Como a urbanidade.

 

Não posso negar. E sempre vale lembrar. Com brumas. Ou com relâmpagos. Eu amo esta cidade.

 

Mas vou lá. Para o tempo de lá. Lugar de sol e mar. Praia. Areia. Pés ao vento. Cabelos ao sol. Não importa se resseca. A pele. O cabelo. Sei lá. As unhas. Não importa. Tanto tempo que não sinto - o mar. O cheiro do mar.

 

Até contei para aquele meu amigo distante. Que mora em frente a outro mar. Vai ver nem ele sabe. Que o mar tem cheiro. É preciso algum distanciamento. Para que depois se possa surpreender. Com o cheiro do mar.

 

Arruma daqui. Lembra dali. Ajeita mais um lugarzinho. Isso sim. Isso não. Absurdo. Sem isso não vou. Não vai caber. Vai sim. Tem que caber. Agora já não sei. Melhor tirar. Melhor deixar. Não. Basta uma. Não. Não vou me mudar para lá. Certo. Então concordo. Mas duvido. Não se preocupe. Sei como resolver. Certo. Então você resolve. Combinado. É verdade. Nem me lembrava. Acho que ainda cabe. Está bem. Retiro.

 

De repente – parei.

 

Me dei conta. Aliás, verbo quase certo. Fiz conta. Uma semana. Sete dias. Cento e sessenta e oito horas.  Sentei. Em meio ao isso-sim-isso-não. Que faria. Que farei. Como lidar com a falta do meu acesso diário. Das minhas leituras. Das minhas releituras. Dos comentários. Nunca senti uma verdade mais fisicamente do que neste momento. Toda escolha tem uma perda. Procede.

 

Crises de abstinência. Imaginei mil cenas. Letras gigantes nas paredes rindo. Gritando meu nome. Frases inteiras aparecendo e sumindo. Em meio às ondas. Nomes de autores se auto-escrevendo na areia. Meus dedinhos se movendo sem minha ordem. Eu tremendo ao passar por qualquer loja de informática.

 

E piorou. Se isso fosse possível. Mas foi. Possível. Possibilidade é persistente. Não sai fácil. Nem bem eu tentava entender. A possibilidade da tal crise de abstinência - e outra se instalou. Crise de carência. E a pergunta veio. Crua. Fria. Congelada. Em meio às brumas e envolta em relâmpagos imaginários. Será que notariam. Será que perceberiam.

 

Quase se somou mais uma. Mais outra. Crises seqüenciais. Crise de ausência - não vou mais. Crise de presença - vai sim. Crise de superioridade - deixa para lá. Crise de tecnologia - vou levar junto. Crise de obediência - é só uma semana. Crise de relatividade - cada um tem seu tempo.

 

O que não faltava em crise, sobrava em temeridade. Como a individualidade.

 

Lembrei dela. Disse que também iria para lá. Coincidência. Sim. Também. Adoro. Ver a tal queima de fogos. A virada do Ano na praia. Até imaginou se nos encontraríamos. Quem sabe. Tomara que sim. Ela é bem mais mutante. Do que eu. Avisou que ia levar um caderninho. E um lápis. Assim. Simples. Mutante e adaptante. Admirável.

 

O jeito será virar imitante. Certo. Poderei anotar. Rabiscar. Não perder a idéia central. Algo por aí. Mas não poderei enviar. Agora só na volta. Dos sete dias. De retirante a viajante. Agora uma nova espera. Retornante.

 

Crise é assim. Endoidante.

 

Certo. Cabe. Coube. Nada mais. Enfim. Fechou. Fechou. Vamos sim. Não é bom chegar em cima da hora. Principalmente nesta época. Estou. Peguei. Tranquei. Vamos. Desliguei sim.

 

Ainda bem que aqui tem este tipo de lojinha. Quem diria. Sim. Poderia me dizer quanto custa. Certo. Quero sim. Sim. Com esta tela - pequena - melhor ainda. Levo dentro da bolsa. Nada de desertar desejos de posse - no outro. É verdade.


Agora sim.


Viva a certeza do acesso. Viva a possibilidade do accessível. Vamos logo. Estão chamando para o embarque.


 


Novembro 17 2009

 

Quase não acreditei.

 

Abri a porta do quarto. E fui em direção às escadas. Assim. Com a sequência reconhecida. No habitual da rotina. O ato em si. Mas desta vez fugia ao destino.

 

Desta vez um rumo novo. Uma direção escolhida. Uma data festiva a ser comemorada. E tinha hora certa para dar inicio. A hora da partida sendo a mesma do inicio. Perfeito.

 

Lembrei logo da minha avó. Ela afirmava com propriedade. Entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha, menina, entre o que começa e o que termina não tem sequer uma linha.

 

Foi pensando nisso que sai do quarto. Entre a alegria da novidade. E o pensamento já antigo.

 

Primeiro o susto.

 

Estava tudo branco. Não via a paisagem. Só a cor branca se fazia plena. Muitos pensamentos se enfileiraram. Talvez em auxilio. Lembrei do Ensaio. Lembrei do Disco. Fiquei tentando adivinhar as cores. Compreender o excesso. Parada. Antes mesmo de descer as escadas tudo já havia ocorrido.

 

Não faltaram ideias. Ou recordações. E tudo diante do branco de uma paisagem ocultada. Enfim.

 

Depois a decisão.

 

Desci as escadas. Do lado de dentro - sala estava envolta no branco. Do terraço não se via nem o gradil. Como se houvesse nada além da imensidão branca. Ocupando todo o espaço. Apagando obstáculos. Limites. Acessos. Coerente com o incompreensível.

 

Mas lá me fui dar conta do planejado. Sem filosofias. Sem construções literárias. Tinha que prosseguir em tempo. Pelo tempo. Dentro do tempo. Que o branco lá ficasse.

 

Pragmatismo em ação. Tudo resolvido.

 

O que sobrou em branco - sobrou em falta. Faltava teto. Esta a explicação lógica. Sem teto – sem pouso. Sem pouso – sem decolagem. Simples assim.

 

Podia-se olhar o branco pelo tempo que agradasse. Mas do solo. Só isso. Enfim. Várias parcerias se estabeleceram. E lá ficamos a aguardar que pelo menos uma delas se dissolvesse. Para que o projeto continuasse dentro de uma possível execução.

 

Quando o Disco iniciou sua decomposição – o azul foi se aproximando. Enfim.

 

Cores e nuances iniciaram as suas tarefas. Com o mundo colorido – voltou-se ao propósito inicial.

 

Já não era sem tempo - disseram alguns. Olha o tempo que perdi – comentaram outros. Agora não chegarei mais a tempo – falou alguém com tristeza na voz.

 

Alguns se olharam. Outros ficaram dentro dos seus pensamentos. Talvez nem tão brancos como antes a paisagem. As expressões eram bem tensas. Talvez estivessem no oposto do Disco. Vai lá saber as conseqüência de uma total brancura. E alheia a qualquer avanço tecnológico. Uma brancura por si só.

 

Uma cor – é uma cor. Apenas isso.

 

Quando todos se acomodaram – os avisos começaram.

 

Orientações sobre segurança. O que é proibido. O que é permitido. O que é impossível de ser transgredido. Seguidos de explicações. Situações independentes da nossa vontade. Assim explicavam. Como uma valiosa informação prestada.

 

Sentados e acalmados – houve uma sensação de tranqüilidade. Como se já afivelados – o tempo voltasse ao controle. Cada um com sua solução. Ou sua dificuldade. Mas com absoluta expectativa de aceitação.

 

Olhei para o infinito. Para os muitos tons de azul até o rosa. Mas abaixo se via um branco denso.

 

Optei por escutar uma música. Coloquei os fones. Foi instantâneo. Uma outra viagem se fez. Isolada da formal. Descompromissada com as técnicas. Ou com as coincidências. Quase deu uma confusão mental.

 

Ri. Tocava uma marcha. Nupcial. Uma bela orquestração. Belíssima. E no momento da subida do vôo. Assim. Como se uma regência de fora se fizesse presente. Como uma necessidade.

 

Acordei no branco. Sentei diante do azul. Em proximidade total com o Universo. Se assim se pode dizer.  Um casamento realmente se fazia.

 

O plano da partida e a vontade da chegada. O azul e o branco. As nuvens e o metálico do progresso. O plano e o ato. O gesto e o fato. O riso e a festa.

 

Não sei se foi um recadinho. Uma desculpa. Um sinal. Isso não se sabe jamais. Não tem provas. Nem documentos. E cabe a cada um fazer e desfazer os códigos. Muito mais internos do que externos. E conforme se apresentam.

 

Conclui. Perfeito. Assim devem ser as comemorações.

 

Olhei para ele. Apertei a mão. Sorri.

 

 


Julho 16 2009

 

Os anos passaram mesmo.

 

Ela nem se dera conta. Termo exato. Não contara o tempo. Os dias. As mudanças das estações. Não deu importância. Nem ao calendário lunar. Só ao que somasse ou multiplicasse. Esta uma forma segura. Ou uma tentativa bizarra. De não angustiar - pelo que não tem. Olhando apenas - para o que tem. Estava se sentindo adequada. Aprendera algo. Aprendera a seguir com os dias. Para a frente.

 

Se escolhera disfarçar a falta - nada melhor que viver de somar. E lá se ia.

 

Somava roteiros. Descobertas. Novidades. Até nomes de ruas.

Mas não é bem assim. Dias também se contam para trás. Porque são particulares. E cada um tem seu próprio calendário. Seu gregoriano de plantão. Como uma emergência providencial.

 

Ao abrir da porta - teve uma sensação estranha. Como se tivesse estado desmemoriada. Ou em estado de esquecimento. Durante muito tempo. Naquele momento se deu conta. Do tempo.

 

Estava bem mais atrás. Quando ela deu a ordem de saída. Seguiu a fila. Ainda no mesmo estado. Caminhava lenta. Compassada. Com olhar de rotina. Sem alardes. Sem manifestações. Não deu para negar um detalhe. Mínimo. Um súbito frio que escolhera o estômago. Dela. Como um posseiro. Impulsivo. Aqui vou estar.

 

Ela desconsiderou. Deveria ser o cansaço.

 

Chegou à porta. Diante da escada. Entendeu uma frase banal. Da tal luz no fim do túnel. Nunca viu tanta similaridade. E entendeu o tal friozinho posseiro.

 

Primeiro o cheiro.

 

O cheiro de mar. De maresia. De berço. De sereia. De fartura. Respirou forte. Como para despertar um sentido até já esquecido.

 

Naquele momento importava respirar. Respirar. Como o primeiro dos atos. Como o primeiro dos instintos. Lembrou de tudo. De tantos. De todos. De teorias. Isso numa única inspiração.

 

Até fechou os olhos. Os sentidos exigem – muitas vezes – privilégios. Concedeu.

 

Deu mais um passo. Sentiu a luz. Uma luz forte. Mas calma. Encheu todo o espaço. Os olhos não demoraram a se acostumar. Mas demoraram a acreditar. Como tinham conseguido compreender.  A distância da luz. E por tanto tempo.

 

Descendo a escada sentiu o calor. Na pele. Nos cabelos. Como um abraço. O calor contornava o corpo como uma manobra de revitalização. Emoldurando, despertava. Como uma aura festiva. Assim sentia.

 

Pareceu escutar um bem vinda.

 

Cercada pelo cheiro. Pela luz. Pelo calor. Decodificado todos os sinais. Na emoção. No corpo. Concluiu. Estou aqui. Como se a memória só naquele momento estivesse despertado. E aberto as suas gavetinhas. Expondo fotos. Marcas. Traços. A própria história. Desde sempre.

 

Obedeceu. Agradeceu.

 

Foi seguindo o percurso estabelecido. De vez em quando até fechava os olhos para sentir mais forte o cheiro. Depois abria os olhos com muito cuidado.

 

Como se assim pudesse separar cor por cor. Com lentidão. Para que nada escapasse. Ficara tomada de egoísmo. Egoísmo pelo puro prazer de quem retorna. Não sabia se havia esquecido aquela intensidade das cores. Ou se havia se defendido – acinzentando a tal intensidade daquelas cores. Tantas vezes o que parece - não é o que parece.

 

É muito mais fácil viver o prisma inteiro que um único ângulo.

 

Escutou sotaques. Regionalismos. Palavras que nunca mais dissera. Comportamentos que nunca mais tivera.

 

Recostou no carro. A cabeça um pouco para trás. E assim ficou. O tempo que o percurso durou. Virando com vagar para mais um detalhe. Ou para saber das ausências. Das mudanças. Das descrenças.

 

Foi retomando seu registro. Entendendo a própria presença. Se incluindo no estilo. Se re-compondo. Poderia sentir. Dizer. Repetir. Escutar. Sou daqui.

 

Olhou para todos os lados. Para todos os espaços. E respirou - tranqüila.

 

Por um período - estava de volta. Apertou forte a mão dele na dela. Sorriu.

 

 

 


Julho 07 2009

 

Decisões são da ordem da auto imposição. Assim fez. Nem bem tomou a decisão e já pôs mãos à obra.

 

Termo bem adequado. Parecia uma obra. Uma construção.

 

Já acordou pensando. Vou arrumar os livros. Nem sabia explicar por que a decisão. Detestava arrumação. E por um motivo simples. Bem simples. Detestava ver a desarrumação que uma arrumação provocava.

 

Alguém havia lhe dito. O por que desta reação. Lembrava, certamente, a desarrumação interna. Como um espelho. Por isso se angustiava.

 

Na época até ficou atenta. Agora decidiu deixar a interpretação de fora. Ao menos naquele momento. Mal dava conta da idéia. Imagina da etiologia da idéia.

 

Riu e prosseguiu na decisão. Cedeu a este primeiro pensamento do despertar. Se tinha um motivo – descobriria.

 

Começou pela estante da frente. Alguma ordem tinha que ter. Para enfrentar a desordem. Escolheu a ordem decorativa, digamos assim.

 

Auxiliada por um paninho, álcool e óleo para couro – lá se foi. Se sentiu uma restauradora daquele famoso Museu. Não faltou nem a máscara descartável. Afinal. Nem só de restauração vivem os alergistas. E vale mais uma vez o contrário. Em parte.

 

Uma idéia realmente de mosteiro. Estilo auto flagelação.

 

Parecia ter tido um começo. Em algum momento começou. Mas confirmava nunca ter fim. Em algum momento assim pensou. Sim. A cada livro retirado para ser adequadamente catalogado – uma nova fileira tinha que ser remanejada.

 

E quando remanejava e dava por encerrado - descobria um volume perdido. Que pertencia justamente – à prateleira que já tinha encerrado. Foram muitas idas e vindas. Sobe e desce. Desvira e vira.

 

Já mais calma resolveu – vai lá saber também por que - abrir os livros.

 

Viu que todos – ou quase todos - tinham datas. E local onde os comprara.

 

Alguns até com dia e hora. E a estação do ano. Até riu. Nem lembrava mais - assim fazia.

 

E assim fez por muito tempo. A cada livro comprado registrava. Os dados do dia da compra. Até o boletim meteorológico. Riu de verdade. Mas não deixou de achar muito boa a idéia. Congratulou a si mesma. Em um deles viu que tinha escrito. Primavera sem flores e com muita chuva. Viu o ano. Será que fora mesmo. Ou seria ela que estava se sentindo assim. Deveria ter anotado melhor. Em um outro estava lá. Dia de sol, final da tarde - a livraria estava vazia. Novamente não sabia se era a sensação dela com ela mesma.

 

De repente caiu um papel. De dentro de um outro volume desgarrado. Amareladinho. O papel. Meio amassadinho. Ou melhor, enrugadinho. O tempo não poupa nem os papeis, pensou.

 

Lembrou daquele poeta. Ele falava isso num poema. De um papel amarelado encontrado num livro. Mas que rasgara sem abrir e ler. Não queria mexer com o passado. Mais ou menos assim, pelo que recordava da poesia.

 

Fez diferente. Abriu. E leu.

 

Era um bilhetinho dela. Avisando que tinha adorado a temporada que tinha passado lá. Que fora muito bem acolhida. E que a adorava muito. Que se sentiu fazendo parte real da família. E que estava com saudades.

 

Quase chorou. Incrível. Ela agora estava casada com ele. E fazia realmente parte da família. E escreveu esse bilhetinho ainda tão criança.

 

Foi em meio a tudo isso que teve uma luz. E que luz. Tirou até a tal máscara. Melhor espirrar que sufocar. Quando a luz vem é preciso se estar exposta. Ficou até de pé.

 

Estantes. Uma real autobiografia. Ou uma prova autobiográfica. Os próprios livros. Estes que se compram e guardam em alguma prateleira. Os lidos e até os não lidos.  Porque são resultado de uma escolha. Denunciam a evolução. A formação do pensamento. De época em época. O crescimento emocional. Não importa o estilo. Importa esta composição.

 

Pelas datas relembrou lugares. Pessoas. Estados de espírito. Movimentos. Ideologias. Filosofias. Entendeu as que ficaram. Compreendeu as que se foram. Assimilou as que se construíram. Avaliou as que sucumbiram.

 

Olhou para os livros como para si mesma. Passou a mão de leve pelas capas. Leu com carinho seus registros. Foi assim organizando - com súbita tranquilidade - toda a estante.

 

Entendeu o próprio pensamento.

 

Ali. Sentada. Diante da tal estante da frente. E de frente para a estante. Ali viu sua vida. Suas buscas. Seus achados e perdidos. E deu um riso particular. Para esta sua idéia ao despertar. Do despertar.

 

Procedia.

 

 


Junho 17 2009

O convite chegou de repente. No começo de uma noite de muito calor - e pouca opção.

 

Convidava para o casamento dele. De repente - este virou o termo repetido. Porque as lembranças iam chegando de repente. E aos montes. Como dizia a minha avó. Só as lembranças nos comandam, menina, só as lembranças nos comandam. Ri sozinha.

 

Posso sim. Posso falar agora. Que aconteceu. Que voz tristinha. Sim. É arriscado. O período. Pode acontecer, sim. Sua mãe não vai gostar mesmo. Mas sossega. Nada vai acontecer. Alguém Cuida da juventude hormonal. Fica calmo.

 

Ainda bem. Acalmou agora. Mas faz favor. Veja se toma mais cuidado. Eu sei que é difícil. Mas a adolescência também tem mais ocupações. Além desta específica. Ainda bem que voltou a rir.

 

Pode lógico. Passa a semana aqui. Não importa se acabamos de nos mudar. Que graça tem uma casa se não for para receber os amigos. Diz a ele que pode vir. Sim.

 

Só rindo. Então vai ficar o dia todo aí. Em frente a este aquecedor. Vai ficar bem passado, isso sim. Tem razão. A temperatura aqui nem de longe está lembrando a de lá. Sei disso. Sim. Sinto saudades. Mas tinha que vir. E vim.

 

Assim. Sem muita dialética. Dialética virou foi queixo tremendo. De frio. Toma mais um. Edredom de plumas. Esse deve esquentar. Só cuida para não causar um incêndio. Com o aquecedor ligado o dia todo. Vai levar o aquecedor para o exame - também. Prometo nem vou rir mais.

 

Não nos víamos há anos. Muitos anos. Desde aquele último inverno. O do aquecedor acoplado. Ao corpo. Não sabia que ele havia sido requisitado. Soube na hora. Viera comemorar com o amigo de toda a vida. De pequenos a adultos. Mesmo distantes – sempre presentes. Nas noticias. Nas opiniões. Nos acertos. Nas profissões. Nas decisões. Nas escolhas afetivas.  

 

Nos encontramos no cortejo. Me viu. Veio feliz.  Em direção a mim. No dia exato e no momento exato. De toda aquela matrimonial confusão. Brinco perdido. Chuva sob marquise. Foco de luz nas costas. Gata assustada em sofá. Ameaça de desmaios em altar. Ele chegou. Sorrindo. Com aquele sorriso leve. Comemorativo. Abriu os braços. Não parava de me beijar, de me abraçar. Repetia meu nome mil vezes. E ria. Fiquei emocionada. Ainda bem. Que deixei este tipo de alegria plantada. Para ser colhida num reencontro.

 

Há uma certa fase da vida que as pessoas não sorriem simplesmente. Elas celebram. Comemoram. Riso tem uma outra equivalência. E quando essa equivalência desaparece e fica só o riso – muitos chamam de amadurecimento. As celebrações se recolhem. Já não há mais tanto festejo.  

 

Tem gente que já nasce com o riso amadurecido. E há os mais afortunados que o resguardam de qualquer distrofia. Às vezes amadurecer também equivale a uma distrofia. Mas enfim. Lá estava ele.

 

Cresceu belo. Forte. Saudável. Competente.  Brilhante. Mas manteve o riso comemorativo. Amadureceu sem se tornar um distrófico emocional.

 

Telefonou para fazer o convite. Fazia questão. Que lá estivéssemos. Casaria lá. Na cidade de onde vim. O trajeto se invertia. Agora nós que iríamos.

 

Tanto tempo sem voltar. Após um segundo de apnéia – escutando o convite pelo telefone – retomei.  O fôlego. O susto. A intenção. A voz.

 

Lá pode até ter brinco perdido, mas não tem chuva. Nem gata. Nem foco de luz. Nem prédio com marquise.

 

Tem sol. Tem mar. Tem cheiro de mar no começo do dia, no meio do dia e no final do dia. Tem cheiro de mar na brisa da noite, da meia noite. Tem até isso. Meia noite. Tem vista. Tem banquinhos para ver a vista. Tem coqueiro.

 

Tem paralela. Tem modelo. Tem forte. Tem ladeira. Tem uma sereia acolhedora de peito aberto. E  farol sinalizador de que está perto. Tem alta e tem baixa. Tem fita. Tem conta. Tem cor de ouro nas panelas. Tem mil molhos nas tigelas.Tem caldo. Tem lambreta. Tem até sururu. Lá tem tanto que nunca mais vi.

 

Tem a amizade que desprezou geografia. Que prestigiou afetos. Que memorizou amparo. E tudo em tão juvenis tempos. E contratempos.

 

Voltar requer sempre mais coragem que partir. Mas lá vamos nós. Outra vez sob o olhar de Manturna. Apertem os cintos. Entre céus e terras, passando pelo doce azul do mar. Uma certeza - o riso festivo se fará coro e cor. 

 

 


Junho 09 2009

De repente chegou a mensagem. Uma longa mensagem. Depois de muito tempo. Nem acreditei quando vi o nome no remetente. Ela estava ali. Se despojando. Não se expondo- mais se impondo. Relatando o silêncio. Muito mais que as palavras. Mas também não poupando palavras para falar do silêncio. Não se justificava. Se diagnosticava. Foi o que me pareceu.

 

Passei dias lendo e relendo.

 

Deve ser assim quando não se sabe as respostas. Muito menos as perguntas.

 

Como dizia a minha avó. As perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas, menina, as perguntas têm sempre mais conteúdo que as respostas.

 

E por isso fiquei assim. Só lendo. Relendo.

 

Contava que se afastara dos mais próximos e privilegiara os mais formais.

 

Os mais distantes. Buscava quem não via há dez anos. Mas não queria conversar com quem se despedira ontem.  

 

Fiquei com uma dúvida. Nunca os mais afastados – ou formais – mudarão de posição. Será assim. Posição estagnada. Ou será que vai se girando. Cada vez que a proximidade vence – passa-se a diante. Isso também não combina com a ela que eu conheci.

 

Continuei. Fez outros relatos. Sobre o choro fácil. Desautorizado, mas dominante. Sobre o sono difícil. Autorizado, mas desobediente. Sobre as condutas idealizadas. Banalizadas, mas sequeladas.

 

Fiquei eu estagnada. Nem próxima. Nem distante. Nem há dez anos. Nem ontem à noite. Por muitos dias. Nem sei mais quantos. Acho que fiquei projetada. Vai lá saber. Vai ver um silêncio puxa outro. E a memória não perdoa. Lembrei a frase do Francês. Quando a falta é muito grande as palavras também faltam. Devia ser isso. Faz tempo que não discuto com o Francês. Tenho me identificado com as idéias dele. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu concordar com as idéias dele. Do Frances. Mas enfim.

 

Lembrei de outra amiga. Também recém retornada. Nova sincronicidade. Mas esta me desejou serenidade. Vai ver alcancei. Ela deve ter me desejado com muita fé.

 

Ela é linda. Tem um sorriso lindo. Cabelos mais lindos ainda. Um estilo doce. Afetuoso. A voz dela só me traz vontade de sorrir. É uma voz sincera. Até pueril. Não tem voz de adulto desconfiado. Tem voz de criança crédula. Mas com a profundidade de quem já sabe. Ou de quem já duvida. Só de pensar – escuto. O jeito dela de falar meu nome. Rindo. Meu nome sempre vinha acompanhado de um riso. Com sotaque. Transmite segurança. Mas nem por isso é alheia. Aos sentimentos cruéis da humanidade. Reconhece os limites. Percebe as distorções dos limites. Inteligente. Mente interpretativa. Talvez esta a melhor definição dela. Possuidora de uma mente interpretativa. E refinada. Muito refinada.

 

Lembro das noites e noites que passamos nos comunicando. Com letras. Sem voz. Sem imagem. Diminuindo distâncias. Uma em cada exílio. Tentando fazer dele – do nosso exílio - o nativo. O natural. Sem raízes – mas com caules. Algo por aí. O monitor deveria se assustar de tantas risadas. Pela pobreza das nossas supostas metáforas. Ríamos e chorávamos. A nosso favor e contra nós.

 

E quando ela vinha. Saia do exílio dela e vinha até o nosso. Ele até ia dormir.

 

Sabia que a conversa seria longa. In vino veritas. Sentadas na cozinha. O vinho belo, formoso, sofisticado. Em nossa frente. Depois acabado, destituído, garrafa. No lixo. No intervalo - falávamos. Muito. Entre risos e risos. A veritas sempre vencia. 

 

Não posso. Imaginá-la chorando. Insone. Incrédula. Solitária. Racional. Escolhendo os distantes. Se distanciando dos próximos. Se aproximando dos rótulos. Guardando bulas. Escondendo sinapses. Alternando químicas. Seqüenciando idéias. Afastando atos. Colecionando saudades. Vivendo de social. Ou socialmente vivendo.  

 

Leio o aviso. Da distância concedida. Proibido particularidades. Só amenidades. Não chegue perto. Pode falar daí mesmo. Do portão. Cuidado. Ouvido bravo.

 

Mas quero que saiba. Adorei. Fiquei feliz. Com a proximidade distante. Ou com a distância aproximada. Tanto faz. Não importa. Importa é que podemos continuar. Seja onde for o tal portão.

 

Assim é a amizade.

 

Quase beijei o mensageiro.

 

 


Junho 06 2009

Acordei hoje lembrando lá. Deste período lá.

 

Sim. Já comprei tudo. De supermercado também. Fica difícil ir ao supermercado agora. Ou falta tudo. Ou se encontra nada. Sem falar nos acessos. Que são alterados. A cidade fica muito cheia. Sim. Do mundo todo.

 

Muitos sotaques. Muitos idiomas. Uma Babel dançante. Ótimo. É verdade.

 

Um povo hospitaleiro. Disso não se discorda.

 

Acorda. Acordei já. Sim. Este ano começou mais cedo. Cada ano isso muda.

 

Começa mais cedo. E acaba mais tarde. Deve ser. É  verdade. Este circuito cada vez mais divulgado. Se pagam caro os hotéis têm esse direito. De ver da janela. Maravilha. Para eles. Para os hotéis. Até para as janelas.

 

Não escutei. Fala mais alto. Não escutei ainda. Fala mais alto ainda. Não.

 

Não consegui sair de casa. Está tudo bloqueado. Sim. E ainda tem aqueles vendedores. Isso sem falar nas cozinhas nas ruas. Parece que todas as cozinhas do mundo estão na minha rua. Tem cheiro e fumaça de todo tipo.

 

Daria para fazer uma enquete. Se alguém se interessasse. Por enquetes. Mais do que pelas frituras. Sim. Tudo aqui é frito. Muda só a cor. Mas é frito. O cheiro de fritura pode até ser tocado. Fica denso.   

 

Sim. Também pensei a mesma coisa. Achei que ia cair para dentro da sala. A porta da varanda. Que trepidação. Tive até uma confusão mental. Como se estivessem tocando aqui na sala. A noite toda. O dia todo. A porta só trepida.

 

E faz um barulhinho fino. Do metal. Do vidro. Vai lá saber. Nem sei mais.

Impossível. Se deixar aberta - arrisco uma ruptura de tímpano. Se fechar - o calor fica insuportável. Sim. Tem que ligar o ar condicionado. O tempo todo.

 

Mas daí a trepidação parece que aumenta. Fosse eu Física diria que tem um novo efeito.  Aqui. O efeito tampão. Ou efeito sucção. Ou efeito dobrado. De tudo isso ao mesmo tempo. Sei lá. Também não sou Física. Só está me dando desespero. Porque se fecha e liga o ar - parece que a trepidação aumenta. E o cheiro das frituras - entram. Sei lá por onde. Só entram e ficam. Aqui dentro. Perene.

 

O telefone. Não escutei. Não dá para escutar mesmo. Nada além do ritmo. E dos convites. Milhões de vezes repetidos. Tira o pé do chão, galera. Se realmente obedecessem tantas vezes quanto solicitados - teríamos um novo espaço. Aéreo. Levitação. Nem indiano conseguiria. Tantos.  

 

Há quatro dias. Sem parar. Devem parar. Mas não aqui. Aqui nem bem passa um, já vem chegando outro. E a ordem prossegue. Tira o pé do chão, galera.

 

Você queria descer a ladeira. Para ver de perto. Ver o que exatamente.

 

Porque se não souber tirar o pé do chão - corre risco. De ficar com o pé no chão. Por uns dois anos. Com fraturas. Cominutivas. Nem pensar.

 

Não me diga. E ele correu. Por isso acabou no hospital. Dizem que não se pode correr. Tem que ficar parado. Procurando um cantinho. Para deixar passar a onda. Que onda. Ou melhor, que passar. Não passa. Só nas Cinzas. E cinzas de todo o tipo.

 

Tira o pé do chão, galera. Pela milionésima vez. Em quinze minutos.

 

PeloamordeDeus. Tirem logo esse raio de pé do chão.  A voz era de homem. Agora mudou. É de mulher. Não de homem. Não. De mulher. Não importa. Só a ordem importa.

 

Porta. Acho que vai quebrar a vidraça. Tem muita trepidação. Será que alguma vez me livro disso. Vou pedir para o Universo. Alguém tem que me ajudar. A tirar o pé – fora daqui.

 

Que silêncio. Absoluto. E os passarinhos mais ousados - cantando o seu refrão. Reconheci. É um bem-te-vi. A brisa está leve. Sim. Vou tomar um pouco de sol. Dar um mergulhinho. Está tão lindo o dia. E a cidade tão calada. Há apenas o som forte - do silêncio.

 

Aqui é só em determinado lugar. Ou pré-determinado. Estabelecido. Tem Lugar para isso. Nem sei se aqui mandam tirar o pé do chão. Vai quem gosta. E só quem gosta vai. Vai-Vai.

 

Liguei a televisão. No canal que retransmite de lá. A mocinha gritou no microfone. Tira o pé do chão, galera.  

 

Sorri. Leve. Solta. Voltamos para o sol. E para o nosso adorado silêncio – optativo.  

 

Com os pés – relaxadinhos – no chão.

    

 


Maio 30 2009

Naquela manhã acordou como sempre - pontual e correto em suas atitudes. Mantendo a responsabilidade. Não se atrasava. Lá se foi. Dirigindo e concluindo os pensamentos da noite.

 

Sempre tranqüilo. Muitos o citam até como o único completamente feliz.

 

Está sempre bem. Fiel e leal às suas propostas. Bem-humorado. Solidário.

 

Tem um estilo pragmático. Sem atos emergenciais. Não gosta de precipitações. Ou melhor, não gosta mais. Afasta qualquer possibilidade de fantasias sem fundamento. Ou de ideal romântico. Nisso não acredita mais. Mesmo tão jovem. Pesa com cautela as atitudes. Tudo tem risco. E preço. Portanto é sempre bom regatear nos impulsos.

 

Estacionou o carro. Iniciou as tarefas do dia. Não são poucas. É bem titulado. Tem muitas atribuições. Nem teve mais tempo para pensamentos filosóficos. Nem nas conclusões da noite. O dia já estava a cumprir sua finalidade. Da lógica à logística.

 

Esta era a sua rotina. Neste dia teve algo diferente. Não demorou muito e recebeu uma mensagem da Diretoria. Que para lá se dirigisse. De imediato. Ainda encerrou o que fazia com calma e - obedeceu. Subiu.

 

Nunca se soube de uma Direção que não fosse em cima. Acima. Deve ter alguma simbologia. Além da óbvia. Pensou nisso também enquanto subia. Deu até uma risadinha. Nos tempos atuais não é das melhores mensagens. Dirija-se imediatamente à Diretoria. Mas o amadurecimento para não ser precipitado incluía também sustos. Não tomava sustos antes que o susto chegasse. Não tremia em pré. Só em pós. E se assim se fizesse necessário.

 

Tremera em pré e em pós quando o irmão se submeteu a uma cirurgia. A uma dolorosa e demorada cirurgia. Neste dia sim. Perdera o amadurecimento. O pragmatismo. A racionalidade. Ali o corpo tremeu. Diante. Depois. Durante. Foi esta uma das raras vezes.

 

Sorriram quando entrou. Convidaram a sentar. Sentou. Sorriu de volta.

 

Apertos de mãos. Abracinhos. Aceita algo para beber. Um cafezinho. Água mineral com gelo e limão. Fique à vontade. Ele ali. Agradecendo e esperando. E vice- versa.

 

Um deles levantou e entregou uma papeleta. Para que assinasse. Explicou antes que ele lesse. Representaria a empresa numa reunião internacional. Uma reunião de todas elas espalhadas pelo mundo. Seria um conferencista. O representante deste país na conferência. Hoje é segunda. O vôo sai na sexta à noite. Ficará por dois dias na metade do percurso. Depois seguirá para lá. O mesmo será feito na volta. A diferença de fuso é melhor aceita pelo corpo com esta divisão. Aqui está o seu tema. Boa sorte e parabéns. A empresa reconhece seus méritos e tem total certeza da escolha correta. Combinado. Então fechado. Apenas se organize para uma semana fora.

 

Desceu. Não contou se tremeu. Mas nem quis elevador. Preferiu mesmo as escadas. Desceu os degraus como que para acordar. Viver este segundo despertar. Com parcimônia. Passo a passo. Mas sorrindo. Sozinho. Por dentro. Por fora. Pelos olhos. Pelos cantinhos. Fez uma busca geográfica.

 

Restava uma dúvida localizatória. Com exatidão. Procurou no mapa. Mais sorrisos. Então era ali que ficava. Dez horas de fuso. Ainda bem que tinha a tal divisão. Passaria dois dias lá na ida e dois dias na volta. No meio – o local a tal conferência.  Já se imaginou até amigo do jornaleiro. Acenando na despedida. Riu. Estava feliz. Muito feliz. Uma viagem premiada. Já viajara muito. Desde bem pequeno. Mas nunca imaginara em ir até lá. Nem no mais sonhado dos sonhos. Ou nas mais ousadas fantasias megalomaníacas.

 

E lá estava. Com passagem. Hospedagem. Protagonizando uma conferência. Tendo a curiosidade como parceira. Uma semana. Sorriu.

 

Avisou primeiro à mulher. Recém casadinhos. Ela não sabia se ria ou chorava. Ganhou o riso solidário. Depois a família. Não faltaram risos e parabéns. Festejos. Palavras de entusiasmo.

 

Na primeira parada olhou para o alto. A cidade construída. Sem passado. Só presente. O passado se representava pelo estilo das pessoas. Não pela arquitetura. Cada um contava – através do rosto e da indumentária – uma parte da história de um povo. As construções pareciam de cidade do futuro.

 

Como aquela do desenho animado da sua infância. Olhou para cima. Os imensos prédios. Os reflexos de uns nos outros. Parecia uma cidade dentro de cidade.As poucas pessoas circulando pelas ruas. Os belos e numerosos carros nas avenidas. As roupas. Os que seguiam a tradição - rigorosamente. Os que abriram mão dela - rebeldemente.

 

No começo da tarde foi para um passeio. No deserto. Continuou olhando para o alto. Para o sol. Depois para o pôr-do-sol. Para a imensidão de perder de vista. Para aquela luz mágica.

 

De uma esquina para outra parecia ter mudado o século. De um desenho animado futurista para outro - da idade da Terra.

 

Enviou uma foto. Sorrindo. Lindo. Feliz. Montado no alto de um camelo.

 

Viva a Vida e suas surpresas. Ergueu um brinde – ao Alto.  

 

 

 


Maio 16 2009

Conversara com ela muitos anos - pelo telefone. Não se viam. Só se escutavam. Por anos e anos. Um em cada Estado.

 

Eram colegas de escola. De sala. De brincadeiras. Falavam muitos idiomas. Inclusive – e principalmente - o pessoal. Este sim. Não se faz necessário quem ensine. Cada um já porta o seu. E o expõe ao entendedor certo. Assim é a vida. Pela vida a fora.

 

Os pais mudaram-se. Ela se foi.

 

Depois de algum tempo, um dia ela telefonou. Procurando por ele. Com sua vozinha de menina. Ele atendeu. Ficaram horas conversando. Falando. Escutando. Rindo. Às vezes sérios.

 

Conversa de infância é aquela que não falta assunto. Nunca tem ponto final. Não tem polêmica. É um discorrer suave sobre o dia-a-dia. Com leveza. Só quem entende bem o que é a vida pode ter esta leveza.

 

Depois desse primeiro dia - nunca mais deixaram de se falar.

 

Falaram por todo o resto da infância. Ele acompanhou as mudanças dela.

 

As dificuldades na escola nova. A timidez para fazer novos amigos. A falta de interesse pela nova cidade. Telefonava quase que semanalmente. E contava sua rotina. Para ela parecia ser um período menos alegre. Não se adaptava. Sentia saudades do que deixara. Dos colegas. Das professoras. Da rua onde morava. Tentava encobrir tudo isso com os telefonemas.  

 

Ele sofreu um acidente. Teve uma fratura grave no braço. Telefonou para ela contando. Com sua voz de menino. E sua dor de adulto. Ela acompanhou. Neste período telefonava quase todos os dias.  Acompanhou a pré-cirurgia. O pós- operatório. A paralisia temporária. Foram tempos também difíceis para ele. Mas escutaram - nas vozinhas um do outro - toda a solidariedade possível. Até a cura. Total.

 

Veio a adolescência. Mudanças. Namoricos. Festas. Cada um relatando as suas descobertas. Os novos amores. As novas dores. Os novos desamores.

 

Ela sofreu o primeiro impacto. O divórcio dos pais. Toda uma mudança de vida. Mudou de Estado novamente. De escola mais uma vez. Sofreu. Chorou. Ligava com mais frequência. Ele sofreu junto com ela. Compreendeu todo o doloroso processo. Amparou. Escutou. Até opinou.

 

Depois foi a vez dele. Os pais dele se divorciaram. Ela escutou. Entendeu. Esclareceu. Ele se sentiu também amparado. Até mais facilmente decodificado. Ela, já conhecedora do percurso, avisava das pedras.

 

Numa dessas mudanças veio para a mesma cidade que ele também iria morar. Ele completaria seu curso lá. Ela também. Nem acreditaram. Iriam se rever. Depois de muitos, muitos anos. Um encontro. O estilo de cada um diante um do outro.

 

Planejaram. Pelo telefone. Marcaram o encontro. Ansiosos.

 

Impossível mensurar o olhar de alguém. Muito menos a emoção. Ou a surpresa. Se despediram aos cinco anos. Se reencontraram aos dezessete anos. Outras pessoas. Ou as mesmas pessoas. Vai lá saber. O que muda. O que conserva.

 

Há o que o tempo preserva - apesar de. E há o que o tempo consome – apesar de. Cresceram se escutando. Souberam das perdas e ganhos – um do outro. Riram. Choraram. Acertaram. Erraram. Revelaram. Ocultaram. Tinham segredos e mistérios.  Nunca se separaram. Pela voz. Sempre se mantiveram ligados. Por um fio.

 

Se olharam. Se tocaram.  Se enxergaram. Comentaram da altura. Incrível.

 

Na voz a tonalidade muda. Mas não se percebe tanto. É no corpo que o tempo faz seu registro. Na transição de um corpo de criança para um corpo de adulto. Na pele. Nos cabelos. Nos dentes. Nas mãos. Nas unhas. É ai que toda uma história se inscreve.  É ai que a história de cada um se revela.

 

Resta saber ler este alfabeto particular. Eles souberam. Foi o que pareceu. De imediato. Sorriram mais que falaram. Não se sentiram tímidos. Até comentaram isso. Algo como se fosse ontem.

 

Mas lembro de uma observação dele. Um dia comentou.

 

Quando falo olhando para ela de vez em quando sinto um certo estranhamento. Como se ela não fosse ela.  Algumas vezes quando ela fala, eu me viro. Para o outro lado. De forma que não a veja. Só escute a voz dela. Daí retomo. Sim, é ela. E posso voltar a olhá-la. Já a vi também me escutar sem me olhar. Deve sentir o mesmo.

 

Nunca deixaram de se falar. Mesmo hoje adultos e casados. Cada um com seu parceiro.

 

Mas algumas vezes deixaram de se ver. Escutar ficou mais próximo - que olhar.

 

 


Maio 01 2009

Minha avó avisava sempre. As cores da Vida estão na rotina, menina, estão na rotina. Esta frase veio de repente. Na minha lembrança. É verdade.  Acho que a rotina começa quando se abre a porta da própria casa. Num retorno. Numa volta. Sente-se o que foi construído para ser rotineiro. Neste instante. Sente-se na pele. Nas vísceras. Nas batidas do coração. Até na pouca voz. Ou nos excessos dela. Da voz. Pode parecer que significa nada. Mas significa o rumo. O norte. O posicionamento. Diante de tudo. Até da Vida. Mas bem que podia ser sem exagero.

 

Chave na porta. Antes de entrar - todos morenos. O sol fizera sua marca. E algumas até já estavam se desmanchando. Mas denunciavam. O clima. As roupas usadas. A frequência. Tudo isso marcado pelo sol. Como tatuagem.

 

Pode-se fazer toda uma leitura a partir daí.  Efêmera, talvez. Pois nunca se sabe que marcas o sol faz.  Mas uma coisa é certa. Ele nunca deixa de fazer. Não dever ser à toa que o chamam com nome e título de nobreza.  

 

Foi mais ou menos assim. Teve um pré-porta. Suave. Tranqüilo. Como se até nas férias coubessem um missão cumprida.  Há todo um ritual. Na volta. O principal é procurar a chave. A chave da tal porta. Que dá acesso à rotina. Sempre um olha para o outro. E pergunta com quem está. E cada um aponta para o outro. Incrível como esse diálogo se repete. Sempre. Por toda a vida. Com quem está a chave. E ela sempre circula. Agora até ri. Mas não dá para filosofar. Ele foi logo avisando. Sábio. Ou mais que isso.

 

Vidente. Enfim. O portador da chave a encontrou. Abriu a porta. E teve o acesso permitido. À rotina.

 

Nunca vi rapidez igual. Os antes morenos bronzeados se transformaram. Ficaram cinza esverdeados. A visão foi mais forte que a força do tal portador do nome e sobrenome. Brancos. Como se dos picos das montanhas nevadas tivessem vindo. Uma nova leitura poderia ser feita. Até as marcas fugiram.

 

Havia escutado durante a ausência que lá só chovia. Escutara assim. Sem nenhuma atenção. Ou com total desatenção. O que ainda é pior. Como se nada tivesse com isso. Com a notícia. Com a informação.  Muito menos com a chuva. Estava sentindo o sol na pele. Chuva passou a ser ficção. Não uma questão. Desdenhou. Estavam longe. Passeando. Com pouca roupa e muita imaginação. Olhos atentos ao novo. Possibilitando uma nova impregnação na retina. De cores. De luzes. De morros. De montanhas. De ondas. Ouvidos capturando sotaques. Noticias locais. Locais. Separando sugestões. Às vezes cada um meio que cantarolava aquela canção antiga. Continua lindo. Em todos os meses. E riam. Se o sol nasceu para todos eles disputavam. A sua parte na herança. Com afinco. Com avidez. Assim se conduziam. Perfeito.

 

Perfeito não foi bem a primeira palavra pronunciada. No pós-porta. A chave parecia até queimar. Nas mãos. Um já querendo doar ao outro. Ou a qualquer outro. A tal chave. Os olhos paralisaram. Fez até barulhinho movê-los.

 

Era verdade. Chovera. Muito.

 

Transbordara. Repetiu esta palavra sem parar. Transbordara. Quando mudou foi o tempo do verbo. Transbordou. Ele fazia coro. Ela dizia e ele repetia. O inverso também se fez. A água afoita descera as escadas. E se instalara na sala. Nos tapetes. Atrás da porta. Quase riu porque lembrou a outra música. Bem diferente da anterior. Do continua lindo. Porém mais forte. Emocional. Coisa para tenor. E soprano. Dos pés aos pés da cama.

Dava para cantar a música toda. Cabia em tudo. Em especial no desespero.

 

Permitia até a parte do sem carinho.

 

Nem entraram. Ou melhor. Teve um mínimo lapso. De tempo. Como dizem os mais exatos. Mas entraram. Firmes. Ele fez uma piadinha. Nada como por os pés no chão. Ele referia-se ao ar. Ela entendeu como à água.

 

Conseguiram rir. Mas não de imediato. Teve um outro lapso. De tempo. Mas enfim. O momento estava mais carente de atitude do que de dialética. Malas em cima dos sofás. Sapatos fora da anatomia adequada. E vivas aos paninhos. Era já a segunda vez que celebravam. Os paninhos. Quis até descobrir quem foi o inventor deles. Dos paninhos. Repetiu com voz agora de contralto. E uma sobrancelha mais levantada. Vai ver algum adorador do sol. O mesmo, quem sabe, que lhe dera nome e título de nobreza.

Tira daqui. Põe ali. Ali não. Mais pra lá. Não, lá em cima. Agora sim. Cuidado com a escada. Nossa. Que queda. Depois se examina. Tem mesmo nada. Que não esteja molhado.  Mas já está acabando. Esta parte se vê depois. Não. Ela só virá dentro de quinze dias. Não é verdade. Comentou com voz de barítono. E as duas sobrancelhas mais levantadas. Sim. Melhor ver logo então. Já. Tão tarde. O tempo voa. Água também. Acho que somente nós não sabíamos. Agora já sabemos.

 

Viva as cores da rotina. Não fala assim dela. Certo. Está perdoado.

 

Missão cumprida. Missão. Cumprida. Sentados por cima das malas. No sofá. Agora rindo.


Com voz rouca. E sobrancelhas despencadas.



Abril 30 2009

Começou a contar de repente. Tão de repente quanto a lembrança veio. Pelo menos assim conclui. Como dizia a minha avó. Jamais perca a chance de escutar as lembranças, menina, jamais perca a chance.

 

Lembrança é coisa séria. E muito mais séria se da infância. Porque é uma lembrança constituída. Construída. Esclarecida. E, principalmente, não compromissada. Assim são as lembranças da infância. Não nos deixa dúvida. E nos deixa em dívida. Com a nossa memória. Com os nossos prazeres. Que depois até se multiplicam. Ou podem se multiplicar. Mas nunca igual como na infância. Com aquela sensação plena de prazer. Que toda a infância envolve. Seja de que forma for. Não tem preço. Nem taxa cambial. Muito menos selo de made in. Tem que ver com entrega. Com aceitação. Com riso. Estes sim. Os indicadores do afeto. Como um mercado de afeto sem nota fiscal. Mas com o aval do olhar.

 

E ele contou. Quando se sentiu familiado. Assim mesmo. Familiado. Que nada tem que ver com familiarizado. Estava certo. Familiado é integrado. Juntado. Compartilhado. Familiado diz muito mais. Mesmo que não se fale assim. Não importa. Sente-se assim. E explica-se bem melhor. Pela primeira vez estava entre tios e primos. Entendi.

 

Lembrava da voz dela. Melhor dizendo. Lembrava das palavras dela .Porque do rosto esquecera. Perfeito.

 

A voz dela orientava. A olharem para o céu. Lá veriam uma barba branca esvoaçada. Uma mão esticada segurando uma cordinha. Do trenó. E muita cor. No meio da noite. Que estava já chegando a hora. Lembrou de várias cabecinhas viradas para cima. Como devem ser os bons sonhos. Lembrou que olhou. Nem precisou se esforçar muito. Porque logo viu. E feliz riu. Era verdade. Exatamente como a voz descrevia. Viu tudo isso. Viu até barulho.

 

Viu o vento na barba. Viu que os presentes meio que se batiam uns nos outros. Muitas caixas. Mal cabiam naquele espaço. Mas cabiam. E nem caíam. Escutou os sinos. Escutou risos. E muitas cores. Muito brilho. Uma luz toda especial. Em cima dos presentes. Das fitas e da barba.

 

Alguém os mandou dormir. Para que pela manhã estivesse já tudo arrumado.  Obedeceram. Obedeceu. Foi dormir pensando no céu. No vento. Nas cores. Na barba. Dormiu em meio a esses quadros. A essas imagens. Mágicas.

 

Quando acordou pela manhã teve que segurar o rosto. Com as duas mãos.

 

Em volta da enorme árvore estava uma montanha maior ainda. De presentes. Muitas caixas coloridas. Sentiu-se de novo familiado.  Ele vira o percurso. Enxergara no céu. Sabia como tinham chegado ali. E como fora difícil com o vento que fazia.

 

E eles ali. Descabeladinhos. Descalços. Com uma pressa que jamais sentira de novo pela vida a fora. Com tamanha urgência e ansiedade. Era preciso abrir logo. E cada um tinha um nome. Era preciso ver seu nome. Alguém tinha que ler seu nome no pacotinho. Para tomar posse como destinatário.

 

Engraçado como isso depois se torna comum. E sem brilho. Ou sem aquele brilho.

 

Não lembrava a comida. Não lembrava o depois. Lembrava do seu presentinho. Uma imensa carruagem. Com lona. Com cavalinhos. Com rodinhas que giravam. Olhou encantado. E cada um deles abriu o que era seu. Em nome e - por conseqüência - em direito. Passaram o dia brincando. De vez em quando ele olhava para o céu. Queria poder agradecer. Mas não via o dono da barba.

Achou que nunca mais o veria. Depois daquela noite.

 

Em meio ao relato da lembrança riu. Riu mesmo. Não devia ser uma montanha. De presentes. Não devia ser enorme. A árvore. Nem devia ser tão grande. A carruagem.

 

E fez um gestual imaginário. Um muito obrigado. A quem não teve a idéia - de fotografar.

 

A criatividade na descrição de uma lembrança dá muito mais realidade do que uma foto. Uma foto apenas expõe uma cena. Congelada. Nada mais que isso. Não revela a dimensão. Do que se vive na hora. Da foto.

 

E ele, que vivia em volta de papéis, pela primeira vez ficou feliz com a falta de documentação histórica.

 

Riu. Deu um salto da poltrona. Assim. Sem mais nem por que. Olhou atentamente para o céu. Teve uma súbita impressão. De ver um sorriso cúmplice. Dirigindo-se a ele. E meio encoberto. Por uma barba branca.

 

Tranquilo, sentou de volta na poltrona. E com uma suave sensação - de agradecimento cumprido.

 

 


Abril 25 2009

Enfim estava lá. E com eles. Amava aquela cidade. Até faziam piadinhas com ela. Se estivesse triste.  Entregassem-lhe uma passagem para lá. Riria em segundos. Se estivesse concentrada. Bastaria alguém dizer as iniciais do nome da cidade. Ela logo se virava para escutar. E ela não negava. Sua relação com aquela cidade era realmente assim. Passional. Lúdica. E sempre acrescentava para horror dos menos avisados. E Ecológica. E se divertia com a surpresa nos olhares e gestos que este comentário causava.

 

A programação era intensa. Música. Ballet. Teatro. Levara as roupas adequadas. Sapatos adequados. Economizara no espaço. Da mala. Apenas um sapato de festa. Achou suficiente.

 

Deram voltas em lojas e caminhadas no Parque. Sacolas se amontoavam. Voltaram cedo para o hotel. O Hotel era muito elegante. Numa região privilegiada. E perto de tudo que gostava. Descansaram um pouco. 

Foi se arrumar. Aquela noite era a noite da Música. Cuidou da maquillage. Perfume. Cabelos. Estava encerrada a tarefa com a imagem. Por último o sapato. O tal único de festa. Já o havia posto, desde que chegara da viagem, no armário.

 

Daí se iniciou um teatro particular. Cômico e trágico. E quase em iguais proporções.

 

O sapato sumira. Assim. Revira daqui. Procura dali. Abaixa-se aqui. Estica-se dali. Não estava mais lá. Ainda pensou em fazer piadinhas. Vai ver gosta mais de música do que eu. E já foi na frente.

 

Eles, solidários, telefonaram para a Segurança. Subiu um senhor alto. Forte. Com uma prancheta nas mãos. Caneta. Ar sério. Terno preto. Um fiozinho saia do ouvido e entrava no bolso. Do paletó. Explicaram o ocorrido.

 

O senhor alto escutou e depois começou com as perguntas. Eles todos se controlaram para não rir. Com as especulações que fazia o tal senhor. Riso e choro são expressões. Nada têm a ver com Idioma. Ele entenderia e poderia não ajudar. E o tempo passava. Não iam perder a Música por sapato nem risos.

 

A senhora viu alguém estranho no corredor hoje. Esta pergunta foi difícil. Difícil conter o riso. Apenas respondeu. Todos aqui são estranhos. Estamos num hotel. E ainda em outro país. Ele desconsiderou.
E partiu para a outra pergunta. A senhora recebeu algum pedido de resgate. Ela olhou bem para ele. Desta vez riu. Muito. Todos riram. Também desconsiderou o riso e repetiu a pergunta.
Ele insistiu. Quando a senhora o viu pela última vez. Continuou. Olhava para a prancheta. Não olhava para eles. Por sorte de todos.
Perguntou pelo valor de custo. Escutou três valores diferentes. E muitos risos encobrindo as falas.

Fez mais algumas perguntas dentro do mesmo padrão das anteriores. E sempre desconsiderando as respostas. Apenas seguia a sequência do que deveria estar escrito no manual. Não importava sobre o que se tratasse.

Informou – o segurança - que informaria à Seguradora do hotel que tinha sido informado do fato. Mandou que assinasse o documento que continhas as perguntas.  Em três semanas tudo estaria resolvido.

 

Nada mais restava a fazer. Ele se foi. O segurança. Com prancheta. Caneta. E fio no ouvido.

 

Ocorrências como aquela são universais. Protocolo é protocolo. Foram estas as únicas conclusões filosóficas que conseguiram chegar. Não existem linhas dividindo a renda per capita. Não existe barreira de Idioma. É a máxima semelhança possível. Não deve ter sido à toa a punição pela construção daquela torre. Todos iguais abaixo do céu.

 

Olhou para o armário. Um sapato com Design Coitado devolveu o olhar. O tempo passava. Todos prontos. Ela ali.

Aceitou a oferta vinda do armário. Colocou o sapato. E saíram. Rindo. Muito.

 

Já no teatro ela notou o primeiro olhar. Para os pés. Custou a crer. Pensou que passaria despercebida. Qual nada. Não teve quem passasse e não olhasse. Já estava até se sentindo paranóica.

 

Mas não deu importância. Só se sentiu uma funcionária apressada do Exército da Salvação. E fez expressão de benevolência. Com até positivação gestual de cabeça. Para quem a olhasse dos pés ao rosto.

 

Aproveitaram a noite. E a música maravilhosa. Naquele cenário maravilhoso.

 

Ela só lamentou ter ido sem uma sineta.  Na próxima.


Abril 09 2009

Nunca mais brinco. Prometo. Vou até emitir um documento. Nunca mais brinco com a palavra Susto. Vou até mandar para um reconhecimento de assinatura. Em duas vias. E emoldurar.

 

Feriado. E na segunda-feira. Presente divino. Certo. Do prefeito. Para mim agora um semi-deus. De repente eis um feriado prolongado. E saber que na segunda ainda é domingo. Que maravilha. Tanto tempo que não folgo na segunda.  

 

Sol durante o final de semana. Piscina. Estilo férias no terraço. Sim. Vamos fazer então o churrasco. No sábado. No final do dia. Nós seis. Ainda bem que somos. Nada de título de livro. Vamos aproveitar. E nada de preocupação. Na segunda-feira ela dará o jeito certo.

 

Que delícia. Sim. Só ele sabe fazer um churrasco assim. Só ele. Sim. Todos concordamos. Que churrasco maravilhoso.

 

Cuidado. Não se preocupe. Copos quebram mesmo. Sim. Caiu escada abaixo e espatifou bem embaixo da escada. Vou só pegar os pedaços maiores. Não tem importância alguma. Fica tranqüila. Hoje é só festa. Na segunda-feira ela dará o jeito certo.

 

Sensacional a idéia dele. Mas trouxe inteira. E nunca sei o que fazer com ela inteira. Em geral só compro a cauda. Mas não tem problema. Sim. É só colocar para ferver. Aferventar como se diz lá de onde vim. Duas panelas grandes. Temperos picados. Que cheiro maravilhoso. Cuidado para não se queimar. Deixa aí mesmo. Na segunda-feira ela dará o jeito certo.

 

Não acredito. Outro copo. Mas tudo bem. Certo. Empurra então para debaixo da cama. Sim. Melhor mesmo tirar o tapete. Vamos colocar na varanda. Assim não tem risco de alguém se cortar.  Sim. Fica tranquilo. Na segunda-feira ela dará o jeito certo.

 

Tão bom dormir na hora que se quer. Especialmente no domingo. E sem preocupações com o dia seguinte. Tomei até uma taça de vinho. E domingo à noite. Coisa raríssima. Viva meu feriadão. Se eu não gostasse desse prefeito agora mudaria de idéia. Meu prefeito preferido. Ainda bem. Vivas para o prefeito.

 

Mas não coloquei o despertador. Que será que houve. Esta hora. Não é o despertador. É o celular. Encontrei. Sim. Eu mesma. O que aconteceu.

 

Certo. Está doente e vai para o hospital. Agora. Hoje. Desejo melhoras.

 

Obrigada. Não se preocupe. Saúde e doença não dão aviso prévio. Certo.

 

Certo. Repeti isso para mim. Trinta vezes. No mínimo. Certo. Certo. Olhei em volta. Olhei até para o calendário. Era realmente segunda-feira. Do feriado. Feriadão. Que maravilha. Sai do quarto. E já continuei de pé. Nada de cair de costas. Com Sustos. Este Susto foi mega campeão. Mas o amor pela vida falou mais alto. Gritou, melhor dizendo. Tinha muito vidrinho pelo chão. Podia me cortar. E de acordo com a queda cortar até a língua. O que poderia parecer merecido.

 

Tomei uma decisão. Filosófica. Começar de cima para baixo. De baixo para cima seria uma espécie de contramão. Consegui rir. Sozinha. Contramão era a palavra exata. Lembrei do prefeito. Que dera o feriado. Feriadão. Ele que cruzasse meu caminho agora. Ia ver a mão e a contra mão. Ia ver bem de perto.

 

Muito bem. Deixa conferir. Vassouras. Apanhador. Baldinho. Paninhos. Saquinhos de lixinho. Acho melhor assim. Falar no diminutivo. Para que fique mais suave. Leve. Afinal são pequenas tarefas.  Pequenas. Novamente repeti para mim. Trinta vezes. No meu feriado. Feriadão. Este não consigo - falar no diminutivo.

 

Melhor guardar o biquíni. Não vai dar tempo mesmo. Mas tudo bem. Sol envelhece. Quem sabe é uma ajudinha divina. Melhor deletar este segundo pensamento. Sobre a ajudinha divina. Ele às vezes se Aborrece. E fica Vingativo. Chega já de problemas. Por hoje.

 

Mesmo querida. É o que você sugere. Que faça uma massagem. Logo depois que colocar tudo no Lugar. Tão delicadinha. Agora me exigi um diminutivo. Poderia ser perigoso. Às vezes uma palavrinha se modifica. Assim. À toa. E vira uma palavra maior. Obrigada pela idéia. Uma massagenzinha.

 

Sim. Estou quase acabando. Me chamou de exagerada. Achou que exagerei. Não fazia mal do jeito que estava. Que simpático. Poderia ficar assim a semana toda. Que solidário. Sim. Vou desligar. Posso não conseguir um diminutivo adequado agora. Deixa pra lá.

 

Então você acha que foi isso. Ela colocou uma câmera escondida. E viu da casa dela. Daí faltou hoje. Hilário. Não fosse a minha pressa e ficaria aqui. Rindo ao telefone. Por horas. Com você. Muito criativo. Depois a gente organiza a criatividade.

 

Já é tão tarde. Mas não faz mal. Acabou. Acabei. Acabamos. Acabaram. Comigo. Acho que caiu meu oxigênio cerebral. Tirando aquela escorregadinha que dei com o paninho. E uma leve torcidinha no pé. Tudo ficou prontinho como num passe de mágica.

 

Viva o diminutivo.  Apaga o feriadão. Palmas para os caquinhos de vidro. Saudações para a massagista. Acenos para a câmera oculta. Quanto ao prefeito – melhor esquecer.  Nada de qualificar o prefeito.

 

Amanhã – felizmente – já é dia de Trabalho. Repeti isso trinta vezes. No mínimo.

 

 


Abril 08 2009

Estava muito feliz. A viagem fora planejada detalhe por detalhe. Afinal, viagem que não é detalhada não é viagem de prazer. É tarefa. E o que ela menos queria era isso. Tarefas. Queria férias. E lazer. Com uma pitadinha de cultura. Nada de correria. Nada de olhar para a direita. Para a esquerda. Passou. Não viu. Perdeu. Agora é tarde. Quem sabe na próxima. Nada disso. Teria tempo para olhar para o lado que quisesse. Sem seguir ordens. Já bastavam as da rotina.

 

Entrou no avião.  Tinha escolhido esta companhia aérea para fazer já parte do estrangeiro. Nada de companhia nacional. Melhor já ir logo se sentindo em estilo velho continente. Direto para a cidade do seu mini-roteiro. A Cidade Luz. Concentrou-se. Respirou fundo. A viagem era tudo que ela queria. Nada poderia tirar a paz e serenidade que estava sentindo.

 

Enquanto o avião não decolava pegou uma revista. Sempre viajava com uma revista de palavras cruzadas. Tinha esse hábito. Viajava nas letras e nos quadradinhos. Para se sentir mais solta na imaginação. Assim explicava.

 

Esticou as pernas. Dentro do que poderia se chamar de esticar. Naquele exíguo espaço. Tinha outra mania. Melhor gastar em terra que no ar. Enfim todos a bordo. Portas fechadas. Comissários de bordo passando com calma. Olhando os assentos. Sorrisos cordiais leves. Sutis como o sotaque da cidade luz.  Cidade Luz.

 

Fechou os olhos. Descansou a revista no colo. Sorriu para si mesma.

Durou pouco esta etapa. Do sorriso calmo.

 

Primeiro ela deu um pulo. Depois um grito. Algo grudou em seu longo cabelo solto. E grudou forte. Sentiu também na pele do pescoço. Uma moça estava no assento do lado. Solidária, já foi fazendo dueto. Deu um estridente e longo grito. De repente um coral. As pessoas de trás gritaram. As da frente gritaram. Todos gritavam e pediam socorro dentro do avião. Algumas crianças choravam alto.  Senhoras pediam socorro. Pediam para sair. Pediam para abrir a porta. O avião ainda estava em solo.  As comissárias que já estavam em posição de decolagem tiraram os cintos às pressas.

 

Mas o algo ainda estava grudado nos cabelos dela. Parecia que tinha asas.

 

Porque pulava e embaraçava. E quanto mais pulava mais ela gritava. A moça do assento do lado pálida. Gritando. Tentava desatar o cinto. Nervosa, não conseguia. Lascou a unha. Gritou mais ainda. Enfim um comissário conseguiu chegar perto. Da autora do grito. Porque a esta altura ninguém mais sabia a origem. E o corredor estava com muitos de pé. Pedindo para sair. Outros rezando. Sempre tem alguém que reza. Não sei se por todos. Ou por si.

 

Um grito masculino. Destaca-se. Forte. Decidido. Ele gritou. É minha. Fui eu quem trouxe. Não a machuquem.    

 

Os comissários gritaram. Sentem todos. Outros responderam gritando. Saiam vocês da frente. Queremos descer. Veio co-piloto. Piloto. Ergue-se o homem do grito. Caminha por entre as pessoas no minúsculo corredor. Vai – decidido - com as mãos em direção ao pescoço dela. Uns gritaram. Está armado. Terrorista. Alguns se abaixaram. Poderia ter tiroteio. Mas ele não titubeou. Foi com as mãos nos cabelos dela. E agarrou. Com carinho. Por entre os cabelos. Embaraçada. Desesperada. Uma codorna. Uma codorna. Que ele levava escondido numa caixinha. Abrira para ver se estava bem acomodada. Não deveria estar.

 

A cena seguinte constava de um senhor acompanhado de um policial saindo do avião. Abraçado a uma semi-nua codorna. Dentro do avião os comissários repetindo o sutil sorriso.  As crianças recebendo brinquedinhos. Os pais doses de alguma bebida. Um refinamento com sotaque. Como se nada tivesse acontecido.

 

Ela quis pedir uma água. Não tinha voz. Na confusão rasgara a revistinha. Os cabelos em pé com a revoada. Entre penas e fios de cabelo ela lembrou um provérbio. Antigo. Algo como um na mão. Dois voando. Não lembrava direito. Começou a rir. Não parava de rir.

 

As pessoas reclamaram. Olharam feio para ela. Talvez um jeito de não serem olhados feio. Afinal todos gritaram. Pensou. Mas só ela era apontada. Enfim. Não importa. Importa a Cidade Luz. Mesmo assim fez a viagem toda de olhos bem abertos.  Os cabelos cobertos com um lenço.

 

E um risinho aqui e ali em meio a alguma turbulência que disfarçasse.

 

 


Blog de Crônicas - situações do cotidiano vistas pelo olhar crítico, mas relatadas com toda a emoção que o cotidiano - disfarçadamente - injeta em cada um de nós.
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