Blog de Lêda Rezende

Novembro 26 2012

 

Começarei por uma experiência pessoal e já me desculpando por me auto citar. Mas me amparo na opinião/filosofia da minha avó que alertava séria em frase proferida com suave firmeza de que há muito mais egoísmo do que modéstia neste pudor em não compartilhar as próprias experiências. Confiando na sabedoria dela – vou expor um fato.

 

Há alguns anos foi-me pedido para compor uma poesia ou um texto que falasse sobre o desenvolvimento de uma cidade. Seria para um determinado candidato a prefeito desta cidade do interior.

 

Escrevi uma poesia em que o neto sentado no colo do avô colocava a mãozinha por cima da mão já enrugadinha do avô. E os versos circulavam entre Passado e Futuro como uma proposta Presente de desenvolvimento - sem apagar as tradições nem o valor do que antes fora construído.

 

Poesia feita e entregue. Algum tempo de silêncio depois encontrei com a pessoa que encomendou.

 

Ele aproveitou a casualidade do encontro e falou com algum entusiasmo – quero lhe mostrar algo. Abriu o computador e me mostrou um texto entremeado de fotos que circularia pela net para a tal campanha do tal candidato a Prefeito.

 

Olhei para ele e falei com muita indignação – se você escolheu outro texto poético que não o meu poderia ter sido mais gentil e me avisado de uma outra  forma.

 

Naquele meio segundo de tempo entre a fala e o raciocínio ele que me olhou indignado – esta é a sua poesia. Só acrescentei as fotos e uma música de fundo.

 

Repetiu a apresentação – e já sorridente - reconheci.

 

Destacando que não tenho (ainda) nenhuma perda orgânica de memória – fica então a pergunta que serve de abertura a este nosso encontro aqui em Olinda: quem escreveu a poesia? Que parte do cérebro se envolveu muito mais do que supunha a vã consciência?

 

Continuemos pelo suposto impulso do ato criativo - aquele ponto tão obscuro que a maioria não consegue falar ou objetivar. A construção de um texto literário provoca no autor uma certa sombra por cima da realidade temporal Presente. Faz o autor reviver a  criança e o pensamento mágico das crianças. Freud (1) fala da “representação do desejo satisfeito que pode ser comparada aos brinquedos das crianças que substitui neles a técnica puramente sensorial da satisfação.” Em outro texto (2) destaca que “o poeta faz o mesmo que o menino que brinca: cria um mundo fantástico e o toma muito a sério (...) e muitas emoções dolorosas em si mesmas convertem-se em uma fonte de prazer para os leitores.” Ainda no mesmo texto fala que “o individuo em crescimento para de brincar mas quem conhece a vida anímica do homem sabe que em realidade não se renuncia a nada. Apenas trocamos. O que parece uma renúncia - é uma substituição.”

 

Talvez ai “vivam” o Escritor e o texto. Nem tão juntos que possam ser confundidos nem tão afastados que neguem o pensamento mágico. Quando o mundo real não obedece aos comandos da vontade mal alicerçada – quando uma angústia parece maior do que o peso e a altura conseguem suportar – a uns é dado o privilégio da escrita. Eis um percurso mágico que faz da vontade limitada o desejo satisfeito.

 

Cria-se um personagem ou uma situação e como supostos donos absolutos da vontade dos personagens e das situações – caminha-se entre os atalhos das tantas figuras de linguagem. É justamente neste instante que pode surgir este “outro” livro – como se escrito apenas por mãos obedientes.

 

A quem as mãos obedecem?

 

Seriam as composições literárias frutos de atos falhos não ou mal identificados? Uma espécie de lapsus calami ("escorregadela da pena") mapeados por atalhos e desconhecimentos seguidos de reconhecimentos?

 

Lacan afirmou que o empreendimento artístico de James Joyce era o jeito dele de "fazer um nome para si mesmo" de aprovisionamento de um complemento necessário. A arte de Joyce aparece para ser compensada pela falta paterna.

 

Volta-se à fantasia.

 

Um dos mais belos textos que a meu ver exemplifica muito bem as brincadeiras infantis, falseando a realidade mas não a ignorando é Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis. 

 

O personagem - do além-túmulo - conta a vida de maneira arbitrária, brincando com a falta de linearidade temporal. Brinca do eterno já que está morto e o tempo já não importa. E assim pode revelar e desvelar todo o pensamento de forma livre e sem censura – como fazem as crianças em suas brincadeiras. A morte é contada como se vivo estivesse – numa espécie de biografia ambígua – tanto vista de dentro como de fora. O personagem é tanto autor como leitor.

 

E se explica já na abertura do texto: “Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.”

 

Literatura e Psicanálise formam uma parceria bizarra – tanto se escondem como se expõem. Tanto se inscrevem como se apagam. Vivem de metades para tentar fazer o todo esperado. O escritor é um fanático metonímico.

 

Afirma Freud (4) que “o adulto pode evocar com toda a seriedade com que se entregava aos brinquedos infantis e - comparando agora as suas ocupações pretensamente sérias com aquelas brincadeiras infantis - diminuir a angústia demasiada intensa da vida e conquistar o intenso prazer do humor.”

 

A cada um corresponde uma cota de suposta avaliação.

 

São muitas as observações e análises sobre os escritores e seus escritos. Ainda recordo como se escutasse a voz de uma professora de Literatura que por muito pouco voaria no pescoço de um aluno que iniciasse uma interpretação de texto falando sobre “a intenção do autor”. Se na época eu entendia como exagerada a irritação dela – atualmente entendo como dogmático. Procede. Nem o autor sabe responder exatamente pela tal intenção. Freud (5) destaca que “o próprio poeta quando o interrogamos não sabe nos responder ou apenas muito insatisfatoriamente...”. 

 

Não há escritor que não se assuste em algum momento de releitura com o rumo do próprio texto. Algo como se o personagem saísse por ai falando sozinho ou muito pior – saísse por aí lhe dando ordens por onde prosseguir qual um turista desaforado e irreverente com seu guia.

 

Pode-se tanto comandar como ser comandado. E a imensa excitação quase masoquista de ser comandado – quando atingida num fragmento do tempo da escrita – surge como se uma dança já conhecida em seus passos e voltas identificada pela rapidez dos dedos muito mais à frente do que a corrida da mente consciente. Um instante de embriagado prazer por toda a intensa abstração que provoca. É um momento lúdico.

 

Quem é este outro que fala por mim?  Há uma frase em Psicanálise que diz “existo onde não penso”, uma frase que discorda do postulado de Descartes e ao mesmo tempo expõe a teoria do inconsciente.

 

O ato de escrever e o consequente efeito literário comparado a um substituto das brincadeiras e fantasias infantis - pode também ser equivalente à elaboração de um sintoma ou à produção de um sonho.

 

Segundo Freud (6) – o sintoma impede o desenvolvimento da angústia. Seja pelo sintoma, seja pela angústia – seja qual for a ordem escolhida para o que nasceu primeiro – antes de mais nada ou depois de tudo o resultado acaba sendo o habitual desejado pelo Inconsciente – a negação da castração – da morte. E ai Memórias Póstumas de Brás Cubas faz mais um arremate perfeito. O livro repete o desejo inconsciente – onde não há registro de morte. Pode-se sonhar morto ou morrendo – mas está se assistindo a própria morte – vivo.

 

Eis uma das respostas – talvez – por que o autor torna-se leitor surpreso da própria obra. Eis uma das possibilidades do estranhamento – quem escreveu?

 

A Literatura se inscreve com o “nome falso” de quem a escreve. Mesmo que tantas vezes indique o contrário.

 

O escritor mantém esta relação direta com a castração real versus a imortalidade ideal. A sensação de continuidade que um texto, uma poesia, um livro permite – já desqualifica os limites da matéria e faz do objeto construído a imortalidade anunciada.

 

E por este viés assemelha-se à produção de um sonho. Os personagens traduzidos de forma quase alucinatória se insurgem desordenados - se instituem e se modificam. O cenário nem sempre é o descrito como real, as falas e as pontuações mergulham num mundo tão subjetivo que até parece de outro. E preciso ver para crer – crer para ver – para então poder des-velar. O velar ai também entra como velar um vivo/morto – a Literatura. Como uma celebração a um luto pertinente.

 

A Literatura é um Lugar. Um Lugar onde se buscam as tais explicações sobre tanto des-conhecimento. Senão fosse assim – qual o motivo que juntaria tantos numa cidade, vindos de outras cidades, mudando as próprias rotinas, deslocando-se de carros ou aviões para uma feira do livro?

Até agora a Literatura foi falada sob o olhar de quem escreve. Há diferença sob o olhar de quem lê?

 

Seriam talvez as duas faces de uma mesma moeda – onde quem escreve não fantasia para quem lê e quem lê não brinca com quem escreve. Como se ambos de costas um para o outro – neste Lugar onde se tocam sem se ver ou se veem sem se enxergar. Olhos voltados para dentro de si mesmos – na procura deste Outro intermediador.

 

Impossível não citar Fernando Pessoa: “Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer”.(7)

 

 

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 Citações:

(1) TÓTEM E TABU – 1912-1913 – OBRAS COMPLETAS DE S. FREUD - Biblioteca Nueva – quarta edição – 1981 - volume II

(2) O POETA E OS SONHOS DIURNOS 1907 – OBRAS COMPLETAS DE S. FREUD - Biblioteca Nueva – quarta edição – 1981 - volume II

(3) SEMINÁRIO XXIII – LACAN – O SINTOMA

(4) O POETA E OS SONHOS DIURNOS 1907 – OBRAS COMPLETAS DE S. FREUD - Biblioteca Nueva – quarta edição – 1981 – volume II

 (5) O POETA E OS SONHOS DIURNOS – 1907 – OBRAS COMPLETAS DE S. FREUD - Biblioteca Nueva – quarta edição – 1981 – volume II

(6) LIÇÃO XXV – A ANGÚSTIA - OBRAS COMPLETAS DE S. FREUD – Biblioteca Nueva – quarta edição – volume II

(7) INSÔNIA – FERNANDO PESSOA – OBRA POÉTICA em um volume – Biblioteca Luso-Brasileira – série portuguesa.

 

publicado por Lêda Rezende às 00:08

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